Minas Gerais tem 42 mil crianças sem registro

 

Ana Paula Lima
Repórter

A burocracia que emperra a identificação de Moisés Batista da Silva, 6 anos, impede que ele tenha assegurada uma série de direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Além de não conseguir fazer a matrícula em uma escola, o menino corre o risco de enfrentar problemas se precisar de atendimento médico. A criança também não tem acesso a qualquer programa assistencial oferecido pelo poder público, como o Bolsa Família. E até uma simples viagem de ônibus pode ser frustrada enquanto o menor não apresentar a certidão de nascimento.

Mas Moisés não está sozinho. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 375 mil brasileirinhos que vieram ao mundo em 2005 não tinham o documento até março de 2006 - o equivalente a 11,5% dos nascidos vivos no intervalo. Em Minas Gerais, o sub-registro de nascimento chega a 13,2%, com 42.438 crianças nessa situação. Em números absolutos, o cenário só não é pior que no Pará, onde as crianças na forma de "espectro" chegaram a 53.142, no período.

O drama de Moisés é mais sério, porque a pesquisa do IBGE só considera os indivíduos não registrados até o primeiro trimestre do ano seguinte ao nascimento. E quanto mais velho o "pseudo-cidadão", maiores serão as dificuldades causadas pela falta da certidão de nascimento.

"Como é um menor que não existe oficialmente para o Estado, ele não acessa nenhum serviço, a não ser em situação de risco", diz o conselheiro tutelar Deivisson Nascimento, que atua na Regional Nordeste BH. O problema persiste em caso de urgência médica. Hospitais não exigem documentos para socorrer uma pessoa atropelada, por exemplo. Mas se o paciente for menor de 18 anos, ficará sob a guarda da unidade de saúde até que o pai ou responsável apresente a identificação da vítima. Se o jovem receber alta, terá que esperar no hospital enquanto a certidão é providenciada - o que, em tese, pode demorar dias.

A certidão de nascimento também é indispensável para uma criança viajar de ônibus ou avião, mesmo em companhia dos pais. Se o acompanhante for um tio ou ou dos avós, a partida só é autorizada com o documento, prova do grau de parentesco entre as partes. O registro também é exigido para fazer o cartão de vacinas e a matrícula em qualquer escola, pública ou particular.

Em 1997, uma lei federal determinou a gratuidade do certificado de nascimento. Mas a medida não zerou a subnotificação. Para o IBGE, muitos pais e mães ignoram a importância da certidão. Outros não têm dinheiro sequer para ir ao cartório.

A promotora Maria de Lourdes Rodrigues Santa Gema, da Vara da Infância e Juventude de BH, aponta mais uma causa para a legião de "sem-registros". "Algumas mulheres têm a expectativa de que o pai reconheça a criança e adiam a busca pela certidão". A representante do MP avalia como gravíssima a situação de Moisés porque, além de não ter o documento, o garoto está sem representante legal. "A avó exerce a guarda de fato, mas não de direito. Se a criança desaparecer, essa senhora não terá como cobrar providências, porque não pode provar que o menino é seu neto".

A alternativa para Moisés é a avó procurar a promotoria, para entrar com duas ações - uma de registro de Moisés e a outra, de guarda. "O juiz examinaria a situação e poderia dar a guarda liminar para a avó, além de garantir que a criança estude até que saia a certidão definitiva", diz a promotora.

Registro chega tarde para 13%

Tão logo consiga a certidão, Moisés entrará para outra estatística do IBGE: a dos registros tardios. O instituto apurou que 13,5% dos registros emitidos no país, em 2005, aconteceram mais de 15 meses depois do nascimento da pessoa. O número corresponde a 448.554 documentos. Do total, 60.539 eram de indivíduos com 13 anos de idade ou mais. Conforme o IBGE, muitos só procuraram o cartório quando precisaram de um atestado para estudar, votar ou conseguir um emprego com carteira assinada.

Em Minas Gerais, os registros tardios representam 5,1% do total. Poderiam ser menores se o Estado tivesse lei própria obrigando a existência de postos avançados de registro civil em maternidades - as mães deixariam o hospital com a certidão dos filhos. O sistema já existe no Rio de Janeiro, Distrito Federal e em São Paulo.

O Sindicato dos Oficiais de Registro Civil de MG alega que cartórios não podem ter filiais e que, por isso, só uma lei ou determinação da Corregedoria Geral de Justiça (órgão que normatiza os serviços de cartório em cada estado) poderia implicar a oferta do serviço dentro dos hospitais.

Enquanto isso, as maternidades mobilizam os funcionários para alertar as parturientes sobre a importância da certidão. O Hospital Sofia Feldman e a Maternidade Odeth Valadares, em BH, vão além e transportam, em carros próprios, os pais dos recém-nascidos até os cartórios.

O HOJE EM DIA procurou a Prefeitura de Ribeirão das Neves, mas ela considera legítima a Declaração de Nascido Vivo impressa pela internet, recusada pela Vara de Registros Públicos de BH. Também acionou o Ministério da Saúde para conseguir uma via autenticada da DNV. Mas foi informado que a expedição do documento cabe, agora, ao Ministério da Justiça e a funcionária do setor está de férias. A reportagem tentou, ainda, contato com o juiz responsável pelo caso, mas ele está em recesso. (A.P.L.)

David, registrado aos 8 anos

Várias coincidências unem as histórias de Moisés e David Henrique Durães. Além dos nomes bíblicos, os dois nasceram no mesmo dia, 29 de outubro - embora em anos e cidades diferentes. Mas não foram registrados de imediato, perderam a Declaração de Nascido Vivo (DNV), emitida pelo hospital, e tiveram que enfrentar uma peregrinação em busca do direito de existir oficialmente.

No caso de David, hoje com 11 anos, a saga teve final feliz. Depois de oito anos sem certidão de nascimento, ele conseguiu o atestado por meio do Conselho Tutelar - que acionou a Vara de Registros Públicos da capital - e de uma amiga da família, que "abraçou" a causa ao descobrir que o menino estava fora da escola por não ter documentos.

O processo durou dois meses, diz Ângela Maria Rodrigues, que providenciou parte da papelada para David. Além das certidões negativas - provas de que ele não fora registrado em qualquer cartório da capital -, Ângela afirmou em juízo que a dona de casa Cláudia Shirley da Silva Durães era mãe do garoto.

"Foi burocrático e demorado, mas valeu a pena", diz Ângela. "Mas uma pessoa humilde dificilmente conseguirá resolver tudo sozinha". A mãe de David sabe disso. "Se tem uma assinatura errada, o juiz não aceita", diz Cláudia, para quem uma das maiores alegrias foi matricular o filho na escola. "Ele é bom aluno. Passou para a 4ª série, mas estaria na 5ª se tivesse a certidão na hora certa".

A Lei de Registros Públicos dá prazo de 15 dias para que a criança seja registrada, mais 90 dias se o cartório ficar a mais de 30 quilômetros de distância da casa da família. A obrigação cabe ao pai, e na falta dele, à mãe. Passado o prazo, o responsável pela criança terá que procurar o Conselho Tutelar ou a Vara de Registros Públicos. Em geral, pede-se a DNV, certidões negativas de registro, identidade dos pais biológicos e duas testemunhas do parentesco entre a criança e o declarante. (A.P.L.)

Direitos não são assegurados

Márcio Fagundes
Colunista

A grande pergunta que se faz no caso do Moisés é a seguinte: o menino tem ou não o direito de existir? Independentemente da questão da paternidade, de uma possível guarda ou adoção, ele goza dos mesmos direitos de toda a criança no país? Se a resposta é sim, Moisés deve, imediatamente, ser contemplado com a certidão de nascimento. A Lei 8069/90, conhecida por Estatuto da Criança e do Adolescente, que hoje baliza o direito personalíssimo desse público específico, é um libelo em favor do menino.

Já em seu art. 3º destaca que a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Na seqüência, o art. 4º observa que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

A citada legislação federal, em seu art. 10, caput, observa que os hospitais e demais estabelecimentos de atenção à saúde de gestantes, públicos e particulares, são obrigados a: I- manter registro das atividades desenvolvidas, através de prontuários individuais, pelo prazo de 18 anos. A Constituição da República, de 1988, enquadra dentre os seus fundamentos a cidadania (II) e a dignidade da pessoa humana (III) em seu art. 1º. O guri, portanto, é protegido pela Carta Maior.

E o que pensar do seu art. 5º, que assegura a todos os brasileiros igualdade perante as leis? Por que Moisés está impedido de estudar, ao contrário da maioria dos garotos de sua idade?


Fonte: Site do Jornal Hoje em Dia - 07/01/2007

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