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17/11/2017

Artigo - As universidades medievais e o notariado científico – por Dr. Ruy Veridiano

Introdução

              O notariado é uma instituição cuja origem histórica é de difícil precisão. De toda forma, é de indagar-se em que momento no curso dos sistemas jurídicos derivados do tronco romano-germânico é possível atribuir-lhe o caráter científico, deixando de ser um ofício estritamente praxista passado entre as gerações. Essa transformação de arte para ciência notarial deve necessariamente perpassar pela fundação das universidades medievais, com especial atenção para a Universidade de Bolonha, possivelmente a primeira a transmitir os ensinamentos jurídicos, buscando-se identificar de que maneira o direito ali se tornou um curso autônomo e como isso pode ter repercutido sobre a formação do notariado ao término do período medieval.

              Ademais, a verificação dos primeiros traços científicos conferidos às notas é de suma importância para a percepção dos vestígios e dos influxos deixados sobre as modernas instituições notariais e registrais, as quais, embora ainda pouco estudadas na academia, vêm adquirindo progressivamente mais espaço, merecendo, por tal motivo, uma investigação detida acerca de suas origens como ramo próprio do saber jurídico.

              Afora o aspecto doutrinal, torna-se fundamental investigar o desenvolvimento da instituição no cotidiano forense após esse marco científico, com a gradual separação das funções notariais de outras comumente embaralhadas. Para tanto, importante não só recorrer-se à realidade histórica italiana, mas também à francesa, que, além da precoce evolução da Universidade de Paris, contou com imensa proliferação de notários nos principais centros urbanos do território gaulês.

              Dessa forma, pelo uso dos métodos hipotético-dedutivo, dialético e histórico-evolutivo, intenta-se, pela coleta de importantes obras que se dedicaram ao nascimento das universidades e ao caminhar da instituição notarial no Ocidente, confrontar as principais ideias lançadas pelas pesquisas pertinentes à historiografia jurídica, procurando-se averiguar em que medida é possível apontar a Escola de Bolonha como berço do notariado científico da maneira como concebido hodiernamente.

1. AS UNIVERSIDADES MEDIEVAIS

1.1. FUNDAÇÃO

              O surgimento das universidades no período medieval representa importante fato histórico na evolução do pensamento ocidental, sendo por isso muito equivocada a suposta ideia de que a Idade Média é o período das trevas no que concerne aos estudos e ao desenvolvimento da ciência. Na realidade, combinadas com a fundação das ordens mendicantes e com a tradução das obras aristotélicas, as universidades medievais foram fundamentais para o avanço intelectual na Europa (CORRÊIA, 1941, p. 37), principalmente com as três principais, quais sejam Bolonha, Paris e Oxford, responsáveis por construir ambiente propício ao desenvolvimento de novos ideais que tomavam como ponto de partida o pensamento extraído da antiguidade clássica, esquecido por alguns séculos do medievo em virtude do esfacelamento do Império Romano.[1]

              De todo modo, preliminarmente importa notar que a evolução das escolas medievais em direção às universidades ocorre por força do revigoramento do Direito Romano,[2] que passou a servir de bandeira ideológica para a autoridade secular, à época em confrontação com o pontificado.[3] Esses dois centros políticos em tensão precisavam de profissionais para assessorá-los, de forma que os funcionários de ambas as cortes deviam buscar o ensino em algum studium, tais como Chartres, Orleães, Reims, Lyon, York, Salisbury, Paris, Ravena, Pavia e Bolonha (TAMAYO Y SALMORÁN, 1987, p. 41).

              Procedendo-se, então, a esclarecimento terminológico, embora ainda possam aparecer explanações que relacionam a origem da expressão “universidade” ao conjunto de faculdades, isto é, ao conjunto de ramos do conhecimento congregados numa mesma instituição, a verdade é que o indigitado termo não nasce com a hodierna carga semântica. Com efeito, “universidade”, na origem, quis significar simplesmente o agregado de estudantes e professores, ou, se se pretender realizar aproximação ainda mais generalizante, o conjunto de pessoas (RASHDALL, 1936, p. 3-5). Ao término do século XII e no início do XIII, os historiadores encontram registros do uso do termo para se referir às corporações, seja de estudantes, seja de mestres, malgrado também aplicado para guildas e municipalidades recém-formadas. Aliás, no tocante às guildas escolásticas, também se notam os sinônimos “comunidade” e “faculdade”.

              Embrionariamente, a palavra “universidade” nunca foi utilizada sozinha para aludir ao centro de estudos, de modo que as expressões estavam sempre grafadas com a articulação de uma locução adjetiva, verbi gratia, “de mestres”, “de mestres e estudantes” e “de estudos”. Com o passar do tempo, porém, restringiu-se sensivelmente o campo semântico a um tipo específico de guilda ou corporação. Entretanto, consoante Rashdall (1936, p. 5-6), “universidade” não era aplicada nas ocasiões em que se pretendia mencionar o lugar onde instalada, tampouco o coletivo de instituições de ensino.

              Dessarte, a instituição acadêmica em abstrato era chamada de studium e, para diferençá-la de uma escola qualquer, ou de um seminário, ou, ainda, de um estabelecimento educacional privado, utilizava-se a expressão studium generale, novamente se ressaltando não dizer respeito ao conjunto de faculdades, mas sim ao local onde estudantes de todas as partes eram recebidos.  Essa observação é respaldada no fato de que pouquíssimas universidades tinham todas as faculdades disponíveis em seu catálogo, o que evidentemente repugna eventual tentativa de estender sua denotação ao sentido mais moderno.

               Ao chegar ao século XIII, os studia se generalizam a ponto de o nome se tornar vago e sem um campo semântico muito bem delimitado. No entanto, ao menos três características são consagradas como típicas a todos eles: a recepção de alunos estrangeiros, um lugar onde se ensina a alta educação, isto é, onde se leciona pelo menos medicina, teologia ou direito, e, em terceiro lugar, um centro educacional em que as disciplinas sejam ministradas por um número considerável de mestres (RASHDALL, 1936, p. 7).

              Ao longo do indigitado centenário, definir quais eram os studia generalia era muito mais uma questão de costume ou de uso do que propriamente de autoridade do saber. De toda forma, três deles eram insignes em toda a Europa, conforme a especulada cronologia de fundação: Salerno pelo ensino da Medicina, Bolonha pelo direito e Paris pela teologia.

              No final do século XIII, todavia, cessa a ampla liberdade de fundação ou atribuição do nome studium generale em razão da disputa de poder entre Sacro Império Romano-Germânico e papado, ambos com pretensões de estender seu círculo de influência sobre os centros de alta educação. Em 1224, o Imperador Frederico II funda o studium generale de Nápoles, ao passo que, cinco anos depois, o Papa Gregório IX instala o de Toulouse e, já entre 1244 e 1245, o Papa Inocêncio IV estabelece um studium dentro da própria corte pontifical. Conforme Rashdall (1936, p. 8-9), esse embate entre poderes secular e eclesiástico induz ao entendimento de que a fundação dos studia é prerrogativa exclusiva de tais autoridades.

              A disputa política com interesse nos centros universitários era tão evidente que, para fazer com que Toulouse gozasse do mesmo prestígio desfrutado por Paris e Bolonha, o Papa Gregório IX editou uma Bula em 1233 que tinha por objeto conceder a qualquer mestre admitido naquela universidade o direito de lecionar livremente em qualquer outro studium, independentemente de novo exame de qualificação – tecnicamente, era o denominado ius ubique docendi. Com o passar do tempo, outras cidades, ávidas por terem seus centros também reconhecidos no seleto grupo de universidades europeias, passaram a reivindicar ora ao papa, ora ao imperador uma bula que estendesse semelhante prerrogativa. De início, as bulas eram editadas com o fim precípuo de autorizar eclesiásticos a estudarem em tais locais, mas em etapa seguinte passaram a voltar-se para a extensão do ius ubique docendi.[4] A popularidade dessas bulas cresceu em tais proporções que, ao final do século XIII, até mesmo as tradicionais universidades de Bolonha e Paris receberam do papa Nicolau IV uma bula que outorgava idêntico privilégio a seus mestres.

              A prática descrita acima se tornou a regra, de modo que, ao atingir o início do século XIV, só poderiam ser reconhecidos como universidades aqueles centros de estudo fundados pelo papa ou pelo imperador.

              Portanto, em que pese a luta pela aquisição de terreno político, a origem das universidades está situada na formação de guildas escolásticas de mestres ou de estudantes espalhadas nos polos urbanos europeus, as quais se multiplicaram independentemente de chancela advinda do poder papal ou imperial. Os dois principais studia eram Bolonha e Paris, deles saindo mestres dissidentes que iam para outros pontos da Europa fundar novos centros universitários – por exemplo, a criação da universidade de Oxford é decorrência da secessão verificada em Paris (RASHDALL, 1936, p. 16).

              Quando do término da era medieval, o termo universitas já estava associado ao studium generale estruturado de maneira semelhante a Paris ou a Bolonha. Os studia já não mais representavam como ideia principal o ius ubique docendi, mas, sim, uma organização escolástica à qual foi conferida uma série de prerrogativas. Seguindo-se a trilha investigativa de Rashdall (1936, p. 17-18), no século XV não mais se verifica a originária distinção entre universitas e studium generale, termos que passam a ser sinônimos.

              Aduzida brevemente a evolução das universidades na Baixa Idade Média, destacam-se como arquétipos de studium generale Bolonha e Paris, conforme já ressaltado outrora, aparecendo pioneiramente nos últimos trinta anos do século XII. Assim, enquanto Bolonha era nitidamente uma organização de estudantes, Paris era o inverso, ou seja, uma corporação de mestres. Cada uma estava envolvida num ambiente intelectual um pouco distinto: Bolonha se debruçava sobre o estudo do Direito Romano, sendo a casa da Escola dos Glosadores, razão por que tinha como principal disciplina o direito;[5] Paris, fortemente influenciada pelo método escolástico, sobressaía-se pela dialética e pela teologia especulativa.

              Com efeito, não se omite que havia antes de Bolonha e Paris a escola de Salerno, a qual se centrava no estudo da medicina, mormente dos ensinamentos oriundos dos conhecimentos grego e árabe, com especial atenção para anatomia e cirurgia (PEDERSEN, 1997, p. 123). Apesar de antecipar-se às duas primeiras, Salerno não tinha o formato de universidade, sendo simplesmente composta por um conjunto de médicos que foi prestigiado por Frederico II. Esse traço estrutural explica a ausência de influência sobre outras instituições acadêmicas. Entretanto, em virtude das noções advindas da medicina árabe, a partir da segunda metade do século XIII começa o rápido declínio da instituição e, com a chegada do século XIV, já está completa a decadência de Salerno.

              Retornando-se aos casos de Bolonha e Paris, a despeito do brilho de ambas as instituições, não se nega que aquela tenha exercido maior influência no continente europeu, sobretudo nos primórdios dos studia generalia. Isso é comprovado pelo fato de as universidades francesas serem descendentes de Bolonha, bem como de as escocesas se aproximarem em certos aspectos muito mais desta última do que dos modelos parisiense e oxfordiano. No entanto, não se deixa de frisar que as universidades inglesas derivam do modelo universitário magistral – logo, próprio de Paris –, porém com peculiaridades tão incisivas que forçam Rashdall (1936, p. 19) a qualificá-las como tertium genus.

              Enfim, sob a o enfoque político, não se pode olvidar que nos séculos XII e XIII cresce o poder do papado sobre as universidades, seja pelo fomento ao desenvolvimento estudantil, seja pela dependência para com a autoridade religiosa como forma de levar adiante a atividade acadêmica, de modo que, já ao final do século XII, o controle eclesiástico da alta educação é praticamente total. Observe-se, porém, que em momento posterior há uma cooperação de reis e papado, o qual previamente aprovava a fundação feita pelos primeiros, com o intuito de combater heresias e fomentar o aprendizado no velho continente. A influência do poder temporal é irrefutável, mas não pode jamais ser confundida com o verdadeiro controle que cabia à Igreja.

              Nos próximos tópicos respeitantes às universidades medievais, dá-se atenção à fundação da Universidade de Bolonha, imprescindível para o posterior desenvolvimento do notariado científico.

1.2.  BOLONHA

              Para se entender o aparecimento de Bolonha como principal universidade no ensino do direito durante a Idade Média, é indispensável primeiramente apresentar as particularidades que rodeavam a península itálica, principalmente a região da Lombardia, as quais configuraram importantes fatores concorrentes para o relevo bolonhês no cenário jurídico europeu.[6]

              Dessa forma, importa começar admitindo que, na Itália, a educação de origem romana jamais se extinguiu completamente, ainda que se ponderem o obscurantismo medieval e o período beneditino, no qual apenas a Igreja e as suas respectivas autoridades eclesiásticas detinham o conhecimento (VERGER, 2001, p. 36). De fato, na Itália não houve o monopólio do clero sobre o ensino, como aconteceu, por exemplo, na França (TAMAYO Y SALMORÁN, 1987, p. 19). Assim, no norte da península havia um significativo número de professores leigos que teve enorme impacto no movimento de reavivar a cultura proveniente da antiguidade clássica. Ademais, some-se a isso a distinta compreensão da nobreza italiana do norte, que visualizava nos estudos atividade de suma importância para a formação intelectual dos filhos, diferentemente dos nobres franceses ou germânicos, que ainda os consideravam degradantes, próprios para monges e padres de classes mais humildes (SCHACHNER, 1962, p. 149).[7]

              Naquele momento, a alta educação lecionada nas escolas – ainda sem o caráter universitário – se limitava ao trivium e ao quadrivium, os quais, combinados, formavam as chamadas sete artes liberais no conhecimento secular. O trivium era composto de gramática, retórica e dialética, ao passo que o quadrivium, de música, geometria, astronomia e aritmética. Claramente, havia oscilações naquilo que preponderava em cada universidade, de forma que, exemplificativamente, em Paris se dava muita atenção à dialética, enquanto em Bolonha se focavam gramática e retórica (RASHDALL, 1936, p. 92).

              A propósito, não se pode confundir o papel de gramática e retórica naquele momento com sua utilização na modernidade. Isso porque, à época, tais disciplinas do trivium tinham não só viés literário, mas também prático, servindo de formidável aprendizagem para a lavratura de instrumentos jurídicos, portanto preparatórias da atividade de tabeliães e juristas em geral. Note-se conseguintemente o início das conexões da academia com o notariado, estágio ainda muito embrionário, no limiar do direito enquanto ramo autônomo científico.

              De toda forma, retomando as confrontações nas origens de Bolonha e Paris, as diferenças residem sobretudo nas condições sociais e políticas de cada região. Na França, a vida intelectual estava restrita aos mosteiros e escolas das abadias, enquanto as cidades-repúblicas do norte italiano ainda se valiam do sistema romano municipal, cujo aproveitamento lhes permitia ter uma vida livre e vigorosa. Noutras palavras, percebe-se que o Direito Romano continuou sendo aplicado nas cidades e escolas lombardas, independentemente da contaminação decorrente das invasões bárbaras.

              No cenário descrito, as cidades italianas mantinham nomes e formas oriundos do sistema jurídico romano, o que lhes trazia muita autonomia. Embora absorvido o reino lombardo pelo Sacro Império Romano-Germânico, com o tempo as cidades foram emancipadas das autoridades imperiais, passando a gozar novamente da autonomia, finalmente garantida em 1183 com o Tratado de Veneza, na chamada Paz de Constança. Mais tarde, as cidades italianas passaram a integrar o jogo político entre imperador e papado, fazendo alianças com um dos lados sempre como forma de assegurar administração autônoma que beirava a soberania de fato.

              O extraordinário desenvolvimento das comunas italianas nortistas consequentemente criava demandas de cunhos político e comercial, que exigiam invariavelmente o estudo do Direito Romano como forma de criar ferramental jurídico apto a estruturar a vida social. Repetindo-se o asseverado alhures, a maneira de solucionar esses problemas práticos foi a retomada dos estudos romanísticos, que, malgrado negligenciado por séculos nos antigos territórios pertencentes ao Império Romano, nunca foi totalmente menosprezado naquela região (RASHDALL, 1936, p. 97).  Essas circunstâncias colaboraram para que, nos primórdios da Escola de Bolonha, houvesse um entusiasmo por uma ciência do direito, que só foi possível graças à existência de comunidades democráticas, em coletividade estudantil autônoma e não hierarquizada, resultando com o passar dos anos na fundação da Universidade de Bolonha.

              Na realidade, havia uma combinação do Direito Lombardo com o antigo Direito Romano, com pouquíssimos conhecedores deste último até então, apesar da aplicação de parte dele pelos tribunais da região. Muitas funções públicas, porém, tinham por pré-requisito algum domínio diminuto do Direito Romano, que poderia ser absorvido por dois mecanismos diferentes: pela praxe e pela tradição que eram passadas a juízes, notários e advogados, ou pelo direito ensinado nas escolas medievais.

              Essas observações confirmam o alerta de Savigny, que em suas pesquisas já asseverava que Irnérionão havia sido o primeiro mestre do direito, justamente pela preexistência de tais escolas, não obstante o alemão afirmar que o conhecimento jurídico era transmitido preponderantemente pela prática (RASHDALL, 1936, p. 100).
              Na estrutura curricular das sete artes liberais, o direito ingressava como subitem da retórica, que se desmembrava em demonstrativa, deliberativa e judicial. O direito estava nesta última vertente e se conectava com a gramática e o prévio domínio do latim.

              Esse, portanto, o embrião do direito como ciência lecionada na universidade, o que bem demonstra que, assim como a escolástica não se iniciou na universidade de Paris, o Direito Civil não teve seu ponto de partida em Bolonha, sendo, ao revés, fruto de gradual evolução do pensamento jurídico. Ademais, a própria dialética na citada cidade italiana tinha vieses prático e jurídico, diferentemente daquela desenvolvida em Paris, de caráter mais especulativo.

              Cronologicamente, as escolas pré-bolonhesas são as de Roma, Pavia e Ravena, todas oferecendo as disciplinas integrantes das sete artes liberais. Em complemento, Pavia já apresentava em sua grade curricular, ao lado do Direito Lombardo, o Direito Romano.

              Com o passar do tempo, contudo, aquele subitem da retórica judicial passa a ser ínfimo para as necessidades e o desenvolvimento da disciplina, instante no qual se verifica em Bolonha a assunção do protagonismo do direito, que se liberta das amarras rígidas das artes liberais e se torna finalmente uma matéria autônoma. Observe-se, todavia, que isso ainda não era o bastante para retirar de Bolonha o caráter de escola de artes liberais, tanto que a ida de João de Salisbury – pensador que se consagrou tempos depois como professor em Paris –para lá com fito de aprender dialética só confirma a excelência da instituição no ensino do trivium.

              Deveras, o que realmente define a transição de escola das artes liberais para escola de educação técnico-jurídica é a inserção da arte do dictamen, isto é, da arte da composição, voltada para a escrita de cartas, seja de comunicações epistolares entre particulares, seja de regras técnicas para compilação de cartas papais, bulas e outros documentos jurídicos. O posicionamento do dictamen no sistema de ensino era um meio-termo entre a gramática e o direito, sendo Bolonha notoriamente a mais abalizada instituição que ministrava a aludida disciplina, de maneira a se reconhecer que “a escola do dictamen era o berço da escola especial de direito” (RASHDALL, 1936, p. 110).

              É no período de Irnério, aliás, que a ascensão de Bolonha se concretiza, marcando definitivamente a história do direito ocidental, apesar de ser muito prudente uma ressalva metodológica da perspectiva historiográfica segundo a qual as mudanças introduzidas em Bolonha se iniciaram uma geração antes do fundador da Escola dos Glosadores e provavelmente só estiveram perfeitamente acabadas na geração seguinte.[8]

              Opta-se, dessarte, por adotar as cinco principais causas identificadas por Rashdall (1936, p. 120) como responsáveis pelo apogeu da Universidade de Bolonha no âmbito jurídico: a retomada do estudo do Digesto; a abordagem técnico-jurídica, em oposição à antiga abordagem meramente literária dos textos do Corpus Iuris Civilis; a sistematização do estudo jurídico pela completa abordagem da compilação de Justiniano; a autonomização do Direito como curso autônomo, desamarrando-se da retórica; o novo perfil dos estudantes, mais velhos, mais independentes e de origem secular, normalmente advenientes da nobreza. Recorde-se, enfim, que os professores de Bolonha tinham um apreço social muito mais elevado do que os mestres de outras áreas da academia, pois o conhecimento jurídico refletia imenso valor político-comercial, jamais alcançado por outro ramo do saber especulativo.

2.       O NOTARIADO MEDIEVAL E A SUA FORMULAÇÃO EM BASES CIENTÍFICAS[9]

2.1.   O NOTARIADO NO PERÍODO MEDIEVAL


              Embora seja inegável que a fragmentação política do período medieval vulgarizou o notariado em virtude da nomeação desmesurada de pessoas despreparadas para a função, por outro lado possibilitou a disseminação da cultura notarial, uma vez que a diversidade de autoridades políticas – reis, nobres, bispos e papas – exigia cada qual seu corpo de tabeliães (REYERSON; SALATA, 2004, p. 1).[10]

              No século V, veem-se oficiais com o nome de notarii, que integravam a chancelaria pontifícia e outras chancelarias eclesiásticas, formando corporação nomeada de “escola” (ALMEIDA JÚNIOR, 1963, p. 54). Dessa forma, haja vista o relacionamento com as autoridades religiosas, antes mesmo da invasão bárbara os notários já gozavam de grande prestígio social.

              No século VII, o Código Visigótico estabelecia que os condictores deveriam lavrar as escrituras. Essas pessoas eram clérigos que não podiam instrumentalizar documentos que versassem sobre negócios laicos, porém mesmo assim os confeccionavam, ainda que não estivessem investidos de autoridade pública.

              Mais adiante, nos séculos VIII e IX, nota-se marcante influência da legislação canônica sobre a península itálica, faixa territorial sobre a qual a Igreja estendeu seus poderes políticos. Esse momento é fundamental para demarcar uma nítida guinada na posição dos tabeliães, os quais passam a exercer função nobre e honrosa, qualificados por serem cultos e doutos, de forma a confluírem esses predicados para que ingressassem até mesmo na corte papal em Roma (ALMEIDA JÚNIOR, 1963, p. 46).

              Na Baixa Idade Média, como indicado alhures, com a fundação e a expansão da Escola dos Glosadores em Bolonha conduzidas pelas mãos de Irnério, o estudo minucioso da obra justinianeia possibilitou que se recuperasse de alguma forma parcela da tecnicidade jurídica dos romanos. Decerto, entre os séculos XI e XIII, esse movimento acadêmico e a corrente que lhe sucedeu contribuíram para se apurar a função notarial, haja vista a degradação verificada com o fim do Império Romano Ocidental, determinante para imprimir à atividade tabelioa um caráter acentuadamente praxista, em detrimento dos conhecimentos jurídicos acumulados durante a civilização romana.
              Nesse sentido, pertinente aduzir a observação das professoras norte-americanas Reyerson e Salata (2004, p 3), profundas conhecedoras da história medieval, as quais destacam, além do movimento intelectual de Bolonha, a disseminação do uso do notário nas regiões da Itália e do sul da França como consequência de outros elementos histórico-sociais, tais como o crescimento das instituições governamentais burocráticas, o aumento de complexidade na troca internacional e as inovações negociais, todos fatores exigentes da prova escrita, que passa a ser admitida nos tribunais a partir do século XIII.

              Da ótica dos chamados “órgãos da fé pública”, o mesmo século XIII é visto como período de reconstrução dos caminhos para seu desenvolvimento institucional (ALMEIDA JÚNIOR, 1963, p. 61).

              Primeiramente, há que se rememorar a busca pela uniformidade de calendário para seguir o nascimento de Cristo, com o escopo de assegurar a estabilidade das trocas comerciais. As cruzadas e o regime comunal também são fatores fundamentais para açodar a derrocada do feudalismo. Entretanto, o sistema feudal não foi o único alvo atacado por essas mudanças. No período beneditino, os clérigos se ocupavam com exclusividade da lavratura de instrumentos comprobatórios de negócios jurídicos, mas a consolidação das comunas permitiu que reis e papas tivessem aliados para combater os senhores feudais, o que, em última análise, revigorou o uso da forma escrita nos próprios centros urbanos. O estilo, porém, não era dos mais louváveis, pois se redigia no latim rústico repleto de solecismos.

              Nesse diapasão, a importância do imperador e das realezas para o progresso notarial é indiscutível. A título ilustrativo, no Sacro Império Romano-Germânico, Frederico II (1215-1250) promulgou um tratado de paz em 1235 que permitia aos magistrados terem notários para a anotação de procedimentos, recursos e julgamentos, enquanto o rei Felipe IV da França (1285-1314) criou um departamento de notários reais para a escrituração de documentos oficiais (REYERSON; SALATA, 2004, p. 5).
              Outrossim, na Idade Média não existem limites claros quanto às extensões das justiças eclesiástica e secular, notando-se, por isso, as marcas deixadas pelo Direito Canônico, dentre elas o forte caráter formal no tocante ao procedimento processual e a preferência pela prova escrita. Logo, quando do brado pelo robustecimento da jurisdição secular, boa parte dessa técnica foi aproveitada, bastando lembrar a superação das ordálias (ou “juízos de Deus”) e dos duelos.

              Nessa evolução, tem-se, a corroborar a instrumentalização dos negócios por sujeitos laicos, a opção do papado pela repulsa à interveniência dos clérigos para documentar os atos profanos, somada ao crescimento vertiginoso do número de negócios e à nacionalização do linguajar forense, os quais concretizaram a retomada das funções de auxiliares e de serventuários da justiça.

              Ao final do medievo, próximo à transição para a Idade Moderna, a sedimentação das rotas comerciais pela Europa exigiu maior intervenção dos notários para a constituição de prova que preservasse os negócios no tempo, conferindo ao tráfego mais segurança jurídica, com a redução de lides e incertezas potencializadas em contratações meramente verbais.[11]

              Na vasculha dos livros notariais da época, verifica-se a amplitude de matérias tratadas pelos notários. Assim, a clientela vasta e plural abarcava cristãos e judeus, homens e mulheres, pobres e ricos, que buscavam a escrituração de fatos importantes para suas vidas, verbi gratia, casamento, testamento, resolução de controvérsias, compras de terra, casas, tecidos, comida e vinho, procurações, cursos para aprendizado de uma técnica ou profissão, confissão e refinanciamento de dívida, entre outros acontecimentos e negócios jurídicos de relevo social (REYERSON; SALATA, 2004, p. 13).

2.2.            O DESENVOLVIMENTO DO NOTARIADO CIENTÍFICO NA UNIVERSIDADE MEDIEVAL E A EVOLUÇÃO NA PRAXE FORENSE

              A importância da Escola dos Glosadores para inaugurar a cientificidade do notariado da maneira como é conhecido hoje se prova pelo acervo bibliográfico produzido pelos autores italianos, cumulado com a atenção acadêmica que lhe foi dada durante os séculos XI e XII.[12] Na Universidade de Bolonha, por exemplo, fundou-se curso especificamente voltado para a arte notarial, tendo-se em vista a sofisticação alcançada por esta atividade, que passou a fazer parte de negociações e arbitragens nas comunas.

              De fato, em Bolonha, tem-se como fundador da Escola Notarial o mestre Ranieri di Perugia, que elaborou a Summa artis notariae, consistente em estudo exegético da legislação vigente, utilizada também como base bibliográfica de suas aulas. Esclareça-se, ademais, que a palavra “arte” naquele momento era empregada para significar uma técnica, ainda um pouco distante da compreensão como ciência, estágio este alcançado com o caminhar dos estudos sobre as notas. Summa, por sua vez, podia significar tanto o conhecimento adquirido ao longo dos séculos como a sapiência consolidada pelo próprio autor, método de redação comumente optado graças à escassez de papel, que forçava os escritores a resumir todo o conhecimento adquirido desde a Antiguidade até a época em que redigiam (PONDÉ, 1967, p. 152).

              Os protagonistas do cenário acadêmico-notarial, no entanto, foram Rolandino Passaggeri e Salatiel, arquirrivais não só na esfera doutrinária, mas também na ideológica, já que o primeiro era alinhado aos guelfos, ou seja, aos defensores do papado, ao passo que o segundo aderia ao partido dos gibelinos, que pugnava pelos interesses do imperador.[13]

              A despeito do embate, Rolandino teve maior relevância para a escola notarial, pois sua produção bibliográfica superou em demasia os escritos deixados por Salatiel. Como se não bastasse sua reputação doutrinária, Rolandino foi um homem muito bem relacionado social e politicamente, participando da Chancelaria de Bolonha, do colégio notarial desta comuna e da sociedade de banqueiros, entidade na qual atuava como assessor – a reforçar, portanto, a constante interação entre notariado e atividade comercial.

              Sobressaem, dessarte, no catálogo de Rolandino obras como Summa ars notariae, Flos testamentorum, Tractatus notularum, Aurora e De officio tabellionatus in villis vel castris. Apenas para exemplificar os temas concernentes aos trabalhos, o primeiro deles era partido em quatro livros, com enfoque acentuado nos formulários, sendo o primeiro referente a obrigações, contratos em geral e casamento; o segundo ligado a testamentos e codicilos; o terceiro ligado a juízos gerais, atuações concretas e expedições de cartas; e o quarto dedicado às cópias e à reprodução de escrituras (PONDÉ, 1967, p. 163).

              Dirigindo-se, então, aos últimos momentos da Escola de Bolonha, recorda-se do sucessor de Rolandino, PedrodeUnzola, comentarista da obra de seu mestre, tendo inclusive ascendido à mesma cátedra ocupada por aquele, sendo muito lembrar por ter conseguido terminar Aurora, obra deixada incompleta por Rolandino.

              O ciclo de notarialistas se encerra com PedroBoaterio, que, segundo registros históricos, já não tinha o magnetismo de seus predecessores, mas se mostrava um docente de similar qualidade (PONDÉ, 1967, p. 167).

              De toda forma, com o intuito de encerrar esse roteiro acadêmico sem gerar um mal-entendido, deve-se clarear que apesar de Bolonha ser sem sombra de dúvidas o maior centro medieval de estudos notariais, outras cidades italianas como Pádua, Pavia, Florença, Perugia, Siena, Modena e Ferrara também desenvolveram contemporaneamente pesquisas científicas dedicadas ao notariado, haja vista o estado socioeconômico atingido no norte italiano no transcurso da Baixa Idade Média.

              Assim, com arrimo nos registros históricos e no conteúdo das obras notariais da época, percebe-se que nas cidades medievais italianas os notários lavravam testamentos, contratos, atos judiciários e atos das comunas. Essas obras contribuem para o estabelecimento de princípios gerais concernentes às condições de exercício da atividade notarial e às solenidades indispensáveis, num arcabouço de fontes que passa por Direito Romano, costumes, legislação lombarda e Direito Canônico.[14]

              Nos anos posteriores, o material científico proporcionou a elaboração de muitos estatutos notariais nas várias comunas italianas, os quais estabeleciam normas éticas e requisitos para se tornar um notário. Além disso, progressivamente os notários passaram a se associar em espécies de colégios notariais, aos quais cabiam fiscalizar e dirigir a atividade tabelioa, velando pela conservação dos atos e cuidando da regulamentação dos honorários. Aos poucos, a força dessas corporações aumentou, de forma a alcançarem o poder de impedir que pessoas não filiadas a elas pudessem exercer o mister notarial.

              Analisando-se a situação do notariado medieval francês, além da paralela escalada do direito na Universidade de Paris, começa-se observando a confusão embrionária das funções de lavratura de atos e realização da justiça. Os julgamentos foram trespassados dos senhores feudais para os juízes, enquanto aos notários competiam a expedição e a publicação de contratos em nome das autoridades judiciais. Esta última peculiaridade fazia com que, similarmente às sentenças, os atos notariais franceses tivessem executividade, atributo do ato notarial inexistente à época do Direito Romano (ALMEIDA JÚNIOR, 1963, p. 85).

              Nesse contexto, o rei Luís IX, inspirando-se em Carlos Magno, extingue, com o fim de prestigiar o notariado, a possibilidade de concentrarem-se na mesma autoridade as funções de instrumentação de contratos e de julgamento de lides, ocasionando, assim, a separação da jurisdição voluntária. Para efetivar tal intento, Luís IX alocou em Paris sessenta notários régios, os quais exerciam sua atividade na prefeitura municipal (chamada de Chatelet).

              Já no século XIV, Felipe, o Belo, foi reverenciado por estender o notariado a todo o reino, além de obrigar o registro de todos os atos notariais, salvo na hipótese de ter sido lavrado por tabelião parisiense – embora mais tarde a regra houvesse igual aplicabilidade aos notários de Paris, mediante Ordonnance de Carlos VII em 1437. Da mesma forma como verificado em Bolonha e nas suas redondezas, o notariado gaulês paulatinamente passou a organizar-se em colégios e a elaborar estatutos com o fito de disciplinar a profissão.

              Da perspectiva da formação intelectual do notário, há registros de estatutos – por exemplo, de Marselha e de Tarascon – que exigiam ao menos a frequência à universidade para obter a instrução de paralegal (assistente jurídico), o que explica o conhecimento de fórmulas jurídicas para garantia e isenção de que contratos não fossem submetidos a processo judicial litigioso (REYERSON; SALATA, 2004, p. 10). Ademais, normalmente os notários falavam mais de um idioma para atender às necessidades dos comerciantes que viajavam pela parte ocidental do velho continente, habilitando-se, destarte, em francês, italiano e alguns dialetos hispânicos, idiomas falados nos principais polos comerciais do final da Idade Média.

              Os registros literários de Dante e de Boccaccio, por exemplo, ainda que ambiguamente representem os notários ora em sentido depreciativo, ora em sentido positivo não refutam em nenhum momento o fato de serem homens altamente treinados e capacitados para o desempenho da profissão tabelioa. No tocante à técnica de lavratura dos atos, havia três tipos de escrita: o resumo (breve), a minuta (nota) e o ato estendido (grossus). Como os próprios nomes indicam, tem-se um crescente rigor formal na elaboração dos atos, naturalmente tornando a última das técnicas a mais apropriada para comprovação e preservação do fato no tempo. Evidentemente, quanto mais complexa e detalhada fosse a técnica, mais tempo e cuidado eram requeridos do tabelião, o qual, por sua vez, cobrava taxas mais elevadas proporcionalmente à extensão do instrumento redigido.

              A composição dos atos notariais curiosamente se assemelhava muito ao atual estilo redacional das escrituras públicas. Desse modo, havia o protocolo, o corpo e o encerramento do ato: o primeiro significava a abertura, indicando data e outras questões introdutórias; o segundo abrangia o conteúdo do negócio e a identificação das partes, chegando inclusive a prever contingências que poderiam levar à resolução ou à invalidação do negócio jurídico, em cláusulas previsoras, por exemplo, de colheitas ruins, desvalorização da moeda, roubo, pirataria nos mares e evicção; finalmente, o encerramento continha o lugar onde o contrato foi instrumentado, a lista de testemunhas e a assinatura e titulação do notário (REYERSON; SALATA, 2004, p. 27).

              Portanto, pelo avanço prático e científico vivenciado por tabeliães de notas nos séculos XII e XIII, o protocolo notarial por si só fazia prova das obrigações contratuais, embora os historiadores não se tenham deparado com fragmentos que sugerem a produção de prova pela juntada de folhas do livro de notas em juízo. Independentemente disso, entende-se que esse atributo probante do instrumento notarial, apto, por conseguinte, a fazer prova em litígios judiciais, contribuiu para a sobrevivência do protocolo notarial desde a Baixa até o final da Idade Média no sul da Europa.

3. IMPORTÂNCIA PARA O MODERNO NOTARIADO      

              Os registros históricos apresentados nos tópicos precedentes são cruciais para firmar a instituição notarial no Ocidente. Assim, no período medieval, mais precisamente após a rica produção acadêmica da Escola dos Glosadores em Bolonha, o notário, que desde a Alta Idade Média remanescia como profissional eminentemente prático, de conhecimento empírico que se passava de geração para geração, tem um revigoramento técnico-abstrato que lhe confere respaldo teórico no desempenho de sua função.

              Por consequência, essa crescente carga teórico-jurídica acrescentada ao mister notarial exigiu dos aspirantes à profissão o adequado preparo intelectual, implicando a passagem pelos bancos universitários europeus, centros de estudo em que se aprendiam a dialética, a retórica, a gramática e o direito, arsenal cognitivo indispensável na formação de um tabelião talhado para manipular as categorias jurídicas aplicáveis aos fatos a ele encaminhados.

              A recorrência ao notário na sociedade medieval consolidou a função entre os órgãos oficiais – composição esta que já se constatava no Império Romano –, exigindo-se, em razão do crescimento populacional, a ampliação do número de tabeliães nas comunas e burgos, o que tornou premente a necessidade de organizar a classe sob uma corporação ou colégio notarial que se responsabilizasse por elaborar um estatuto com as regras básicas para ingresso e desempenho da atividade, além de fiscalizar o cumprimento dos deveres éticos e o examinar a qualidade dos serviços ofertados. Curiosamente, interessante enfatizar que isso repercute na conformação atual do notariado, o qual, malgrado fiscalizado pelo Poder Judiciário no Brasil, ou pelo Ministério da Justiça noutros países, mantém o hábito de criar associações ou colégios notariais regionais com o intuito de integrar os profissionais, progredir institucionalmente e defender seus direitos e interesses enquanto classe.

              Essa autonomia dos notários foi relevante não só para organizá-los, mas também para definir corretamente os limites da atividade jurisdicional e da extrajudicial, até então mescladas e mal diferenciadas. Dessarte, com a influência política das realezas e do Sacro Império, alcançou-se a independência necessária para que o notariado tivesse uma imagem própria e pudesse preocupar-se sistematicamente com os problemas que o afligissem.

              Finalmente, não se pode descuidar do papel do tabelionato de notas no avanço comercial em fase derradeira do medievo, fornecendo os mecanismos jurídicos propícios para a celebração dos mais diferentes negócios, muitas vezes nascendo de forma atípica certos contratos que não apresentavam roupagem jurídica ou prévia elaboração teórica.       Deveras, o notário bem preparado, similarmente ao que acontece hodiernamente, tinha de conciliar o conhecimento abstrato com o prático, porquanto precisava recepcionar as manifestações de vontade das partes, na maior parte das vezes leigas em direito, e lapidá-las para a linguagem legal, a fim de permitir o ingresso de categorias jurídicas – em certos casos, inéditas – no direito medieval (BRANDELLI, 2011, p. 176).

CONCLUSÕES      

              Ante os argumentos expendidos até aqui, conclui-se que a cientificidade conquistada ao notariado só foi alcançada graças ao significativo avanço teórico-jurídico proporcionado pela Escola dos Glosadores na Universidade de Bolonha, com a revisitação dos institutos romanísticos pelo método da glosa. Deveras, após as primeiras gerações de glosadores, surgem os célebres notarialistas, tais como Ranieri di Perugia, Rolandino e Salatiel, inaugurando-se então rica produção acadêmica voltada exclusivamente às notas.

              Para se chegar a esse cenário, indispensável a análise do fenômeno de fundação das universidades medievais, percebendo-se que a ascensão desses centros de estudo se dá de maneira espontânea, com o avanço das pequenas escolas medievais e o aumento da complexidade de disciplinas que primitivamente compunham uma pequena parcela das sete artes liberais. De início, as mais importantes universidades foram Bolonha, Paris e Oxford. Enquanto a primeira era estruturada como escola de alunos, as duas últimas eram studia de professores. Contudo, independentemente da composição de cada studium generale, o que se observa invariavelmente é a intensa disputa pelo poder político nas universidades medievais, sobre as quais papa e imperador se digladiavam na concessão de prerrogativas aos acadêmicos e no reconhecimento oficial de universidades, em nítidas tentativas de angariar aliados que pudessem fundamentar teoricamente o poder de cada autoridade.

              No ambiente universitário de Bolonha, chama a atenção o florescimento da Escola dos Glosadores, que nasce como corrente de pensamento dirigida ao estudo detido do Corpus Iuris Civilis, mediante interpretação literal – fortemente embasada na retórica, dialética e gramática do trivium – e aposição de glosas marginais ou interlineares.

              Essa imersão nos institutos romanísticos amealhou imensa riqueza técnico-jurídica, de forma a exercer influência marcante na praxe forense, destacando-se neste ponto a transformação no saber notarial, uma vez que, entre o fim do Império Romano e o começo da Baixa Idade Média, remanescera como atividade eminentemente prática e vulgarizada, transmitida entre as gerações pela simplificação num conhecimento empírico. Noutras palavras, a Escola dos Glosadores não só consagrou o renascimento do direito romano em Bolonha, mas também foi fecunda em conceber contornos teóricos à atividade notarial, até então compreendida estritamente como uma arte.

              A atribuição de carga teorética às notas foi fundamental para que se tornasse pré-requisito ao ingresso na profissão o preparo em direito, inicialmente ao menos como um paralegal. É evidente que esse substrato jurídico fornecido ao futuro tabelião no âmbito universitário lhe serviu de ferramental para a adequada manipulação das categorias jurídicas, estando, assim, suficientemente habilitado para compreender a vontade negocial de leigos que necessitassem de seu saber para a confecção de instrumento público.

              Os reflexos do contorno científico, entretanto, vão além do aspecto de formação do notário, pois da perspectiva institucional a atividade tabelioa cresceu tanto qualitativa como quantitativamente com a intensificação das relações comerciais, de modo a obter cada vez mais autonomia e distinção com relação a funções que dela foram estremadas, sendo bastante representativa desse fenômeno a constituição de várias corporações e colégios com o intuito de congregar e organizar a classe.

              Do exposto, arremata-se enaltecendo que muitos aspectos da prática medieval ainda remanescem de alguma forma no notariado moderno. Nesse sentido, a técnica de redação e a composição estrutural de um ato genérico – por exemplo, a escritura pública de negócio jurídico qualquer – permanecem sob a mesma concatenação lógica adotada por notários medievais, com abertura, conteúdo e encerramento. Além disso, a referida organização institucional por intermédio de colégios e de seus respectivos estatutos, combinada com o delineamento mais acertado da função extrajudicial para garantir-lhe autonomia com relação à competência jurisdicional propriamente dita, definem os rumos da atividade tabelioa na Modernidade.

              Enfim, não se esqueça, ainda, de que o notário foi personagem coadjuvante para o incrível progresso econômico ao final da Idade Média, na medida em que concretizava as mais atípicas contratações excogitadas pelos comerciantes, procurando conferir aos acordos contornos tecnicamente precisos, consonantes com a ordem jurídica e hábeis a prevenir eventuais litígios entre as partes contratantes.
Fonte: iRegistradores

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