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19/01/2018

Artigo – A desjudicialização favorece a proteção do consumidor? – Por Fabiana D'Andrea Ramos

A desjudicialização dos conflitos tem sido um tema recorrente na pauta do Poder Judiciário nos últimos anos. A busca pelas chamadas formas alternativas de resolução de conflitos foi elevada à condição de política pública. Significativas alterações legislativas consolidam essa mudança de paradigma, direcionada pelo Conselho Nacional de Justiça por meio da Resolução 125/2010, que culminou na promulgação do novo Código de Processo Civil e da Lei de Mediação, ambos no ano de 2015.

Subsídios para essa mudança foram os relatórios Justiça em Números, publicados anualmente pelo Conselho Nacional de Justiça desde 2004. A partir dessa que se tornou a principal fonte das estatísticas do Poder Judiciário é que se pôde desenhar o cenário das demandas judiciais no Brasil. Nesse contexto, os litígios derivados de conflitos de consumo surgiram como um dos grandes vilões do abarrotamento de ações judiciais nas varas e tribunais brasileiros. Somente no ano de 2016 foram contabilizados mais de 4 milhões de novos casos em Direito do Consumidor. Reduzir esse número de demandas tornou-se uma prioridade, e a busca por novas formas de resolução de conflitos (que não a via judicial) surgiu como a via preferida para esse fim.

Foi nesse espírito que a Secretaria Nacional do Consumidor lançou em 2014 a plataforma consumidor.gov.br, que se apresenta como serviço público para solução alternativa de conflitos de consumo via internet. Por meio da plataforma, o consumidor pode registrar sua reclamação e se comunicar diretamente com as empresas participantes, que se comprometem a responder em até dez dias.

Apresentada como uma forma de “mediação on-line”, a plataforma foi divulgada em todo o país em convênio com os tribunais estaduais e federais. No Rio Grande do Sul, a parceria entre o Tribunal de Justiça e a Secretaria Nacional de Consumidor foi consolidada pelo lançamento do projeto “Solução Direta – Consumidor”, por meio do qual a plataforma é divulgada diretamente no site do tribunal e também é oferecida nos balcões dos juizados especiais cíveis, como alternativa à judicialização da demanda. Servidores foram orientados a repassar aos cidadãos as instruções para utilização da plataforma antes de registrar as demandas solicitadas.

A partir de então surgiram reiteradas decisões de suspensão de ações judiciais até que a parte autora/consumidor comprovasse a tentativa prévia de solução do conflito por meio da plataforma. Tais decisões foram em parte reformadas pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, sob o fundamento de que a utilização da plataforma on-line é voluntária, nunca obrigatória. Atualmente, no entanto, diversas câmaras cíveis1têm decidido pela legalidade dessas decisões e inclusive confirmado a extinção da ação quando não comprovada a tentativa de solução extrajudicial.

Os argumentos para a criação dessa nova “condição da ação” passam todos pela questão do excesso de demandas judiciais. As razões de um dos votos do Agravo de Instrumento 70063985626, julgado em agosto de 20152, é bastante exemplificativa. Afirma o desembargador Carlos Eduardo Richinitti:

“O Judiciário não pode continuar a ser a primeira, única e mais rentável forma de solução de conflitos. Sua utilização deve ser por exceção e não por regra, comprovadas sempre, antes de mais nada, a necessidade e a razoabilidade da utilização da custosa máquina judiciária.
(…) o que está acontecendo na prática é que esse demandismo desenfreado acaba por congestionar a máquina judiciária (…)”.

São inúmeros os equívocos dessa linha de raciocínio. Desde as premissas, até o (des)conhecimento dos conceitos e institutos mencionados, há erros e confusão do início ao fim. Nesse texto enxuto, apresentaremos breves reflexões sobre alguns desses mal-entendidos.

O primeiro e primordial ponto que merece atenção é a relação que se tem estabelecido entre desjudicialização e os chamados meios alternativos de solução de controvérsia. No caso dos conflitos de consumo, o silogismo equivocado é o de relacionar a necessária redução das demandas judiciais principalmente por meio da utilização de métodos extrajudiciais autocompositivos. Falso. Esse argumento pressupõe que o excesso de ações se resolve transferindo os conflitos da mesa do magistrado para uma mesa de mediação. Nada mais equivocado. Trata-se de um argumento míope, que ignora que o excesso de demandas relacionada a conflitos de consumo (o “demandismo” desenfreado nas palavras do desembargador Richinitti) não é a causa do problema, mas, sim, sintoma de um mercado de consumo doente. A doença não reside no “demandismo” do consumidor, impregnado da famigerada cultura da litigiosidade. A opção pela via judicial como forma de ver respeitados direitos garantidos pela Constituição Federal e por vasta legislação não é um capricho de um consumidor mimado, mas o último grito de esperança de um ser humano constantemente desrespeitado pelo “sistema”.

A verdadeira doença do mercado de consumo massificado é a sua desumanização e, no caso brasileiro, a constante, massiva, ininterrupta, violenta e implacável violação do direito fundamental à proteção do consumidor vulnerável. Cláusulas abusivas, cobranças indevidas, publicidade enganosa, desinformação, violação de privacidade, práticas desleais, renovações automáticas de contratos, inviabilidade de cancelamentos, não cumprimento da oferta, desrespeito aos prazos de entrega de produtos. Inúmeras são as formas rotineiras de violação dos direitos dos consumidores brasileiros, que já não confiam mais no fornecedor, o qual sistematicamente nega atendimento às suas demandas. Quais os caminhos oferecidos pelos fornecedores para solução das mais simples reclamações de seus clientes? Ligações telefônicas nas quais o consumidor, se não é atendido por máquinas, só consegue interagir com atendentes mal treinados e despreparados? Chat on-line onde a única resposta que se tem é: sinto muito, senhor, mas… Reclamações para uma ouvidoria que, se ouve, não responde? A causa do excesso de ações judiciais em Direito do Consumidor no Brasil não reside, pois, na postura litigiosa do consumidor, mas no completo fracasso dos fornecedores em cumprir as leis e em oferecer aos seus clientes um atendimento digno.

Parece, pois, muito errado que se queira reduzir as demandas judiciais restringindo ainda mais os direitos do cidadão brasileiro, condicionando o acesso à Justiça. Transferir o conflito da via judicial, para a via extrajudicial não resolve o problema dos conflitos de consumo no Brasil. O que realmente poderia resolver seria uma rigorosa fiscalização e punição para as violações de direitos praticadas pelos fornecedores e, sobretudo, o fortalecimento da via coletiva de resolução de conflitos, tanto em âmbito administrativo como judicial.

Um segundo ponto que deve ser mencionado é o de que a introdução de novas formas de tratamento dos conflitos, sobretudo por meio de métodos autocompositivos, não tem como função a redução de ações judiciais. A desjudicialização não é a causa, mas uma das consequências da existência de métodos extrajudiciais. A necessidade de se criar e, sobretudo, legitimar novas formas de solução dos conflitos nasce a partir do reconhecimento de que nem todo conflito precisa se transformar em litígio, posto que a via litigiosa não é sempre a mais adequada. A valorização dos métodos autocompositivos surge, portanto, a partir da percepção de que a noção de justiça pressupõe um tratamento adequado do conflito e tratamento adequado significa oferecer para cada tipo de conflito a melhor via para solução.

O papel do Poder Judiciário hoje, portanto, é oferecer uma estrutura em que se possa identificar, para cada tipo de conflito, o tratamento mais apropriado, seja por meio de uma ação judicial, ou por outros métodos, tais como a conciliação ou mediação. A via da conciliação já foi apresentada há muito tempo para solução dos conflitos de consumo, por meio da instituição dos juizados especiais cíveis e, infelizmente, fracassou. Hoje, a mediação surge como opção favorita, mas o fato é que na maior parte das vezes não se apresenta como o método mais eficiente para solução dos conflitos de consumo, para os quais em geral é suficiente trabalhar as posições, e não necessariamente os interesses dos envolvidos.

Nesse diapasão, surge uma terceira questão importante, que diz respeito ao interesse público na proteção do consumidor. No caso particular da mediação, é fato que ela pode se apresentar como via apropriada para solução de certos conflitos de consumo, especialmente aqueles nos quais se pretende restabelecer a relação de confiança entre consumidor e fornecedor, quando é importante o acolhimento de aspectos emocionais. Em outra oportunidade já defendemos inclusive que nos casos de acidentes de consumo, por exemplo, a mediação pode mesmo contribuir para o fortalecimento da autonomia do consumidor e para a redução da sua vulnerabilidade3.

Mas a mediação tem um alcance muito restrito, podendo ser eficiente somente no âmbito do interesse do particular. Certamente que a noção de proteção do consumidor passa também pelo acolhimento e restauração de aspectos individuais do conflito, mas muito mais do que isso, a proteção do consumidor no Brasil é direito fundamental e constitui (ou deve constituir) política pública, posto que há interesse público na manutenção do equilíbrio no mercado. Por isso, a solução individual dos conflitos de consumo não é suficiente para satisfazer plenamente a previsão constitucional.

A efetiva proteção do consumidor não se dá somente por meio da solução dos conflitos particulares, em geral de pequena monta e limitada repercussão. A plenitude da proteção do consumidor somente é alcançável pelo tratamento coletivo dos conflitos massificados e por uma efetiva e rigorosa fiscalização administrativa e judicial das práticas de mercado dos fornecedores. Enquanto isso não for alcançado, certamente não haverá redução do mencionado “demandismo” desenfreado.

Por fim, almejar a redução de ações judiciais obrigando o consumidor a buscar previamente a mediação on-line é um atentado mortal a um dos princípios basilares dos métodos autocompositivos, que é o da voluntariedade. A escolha por procedimentos de autocomposição baseados no consenso é uma escolha absoluta e completamente voluntária, jamais podendo ser imposta. A imposição do procedimento não é compatível com a essência da autocomposição (ainda que assistida), onde os interessados precisam participar ativamente da formulação da decisão.

Da mesma forma, no âmbito processual, não pode estar o interesse de agir condicionado à utilização de um determinado método extrajudicial. O interesse de agir nasce da pretensão resistida, e no caso dos conflitos de consumo, salvo os raros casos de má-fé, toda ação judicial certamente é precedida de uma negociação direta frustrada, que é mais do que suficiente para legitimar a demanda.

Essas breves reflexões nos permitem concluir que a desjudicialização dos conflitos de consumo pode estar sendo conduzida às custas da proteção do consumidor, e não a seu favor. A insistência na obrigatoriedade da via extrajudicial está desviando a atenção da verdadeira causa do excesso de demandas, que é a sistemática violação de direitos e, principalmente, está mantendo em segundo plano as efetivas soluções para o problema, que necessariamente passam pelo rigor na fiscalização das práticas violadoras e pelo tratamento coletivo das demandas.

Diante dessas conclusões, fica o questionamento: a quem favorece essa desjudicialização?

1 APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE CADASTRO. INSCRIÇÃO EM ÓRGÃOS RESTRITVOS DE CRÉDITO. PROJETO SOLUÇÃO DIRETA – CONSUMIDOR. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. – É legal a decisão que suspende o andamento do feito até a comprovação da tentativa da solução extra e pré-judicial, pelo mecanismo oficial ofertado pelo TJRS, da solução do conflito antes da judicialização, sob pena de extinção, por carência de ação. – Multa por litigância de má-fé afastada, pois eventual atuação do profissional da advocacia deve ser apurada em ação própria, nos termos do art. 32 do Estatuto da OAB. APELO PARCIALMENTE PROVIDO (Apelação Cível 70075660852, 17ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relator: Gelson Rolim Stocker, julgado em 14/12/2017).

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO DE CANCELAMENTO DE REGISTRO. PROJETO SOLUÇÃO DIRETA CONSUMIDOR. DESCUMPRIMENTO. INDEFERI-MENTO DA PETIÇÃO INICIAL. Esta Câmara, modificando posicionamento anterior vestibular, tem entendido que se mostra válida a determinação de compelir o demandante procurar a autocomposição. A parte autora deixou de cumprir com a diligência para buscar o serviço via extrajudicial pelo projeto Solução Direta Consumidor, devendo ser mantido o indeferimento da petição inicial e a extinção do feito. APELO IMPROVIDO (Apelação Cível 70075627612, 12ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relator: Guinther Spode, julgado em 12/12/2017).

AÇÃO DECLARATÓRIA DE INEXIGIBILIDADE DE DÉBITO COM PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. CASO CONCRETO. MATÉRIA DE FATO. PROJETO SOLUÇÃO DIRETA-CONSUMIDOR. A tutela jurisdicional buscada pelo autor se mostra abusiva e desprovida de interesse de agir. Negativa de comprovação de tentativa de solução do litígio pelo sistema de solução direta ao consumidor, disponibilizado no site do TJ/RS. Apelo desprovido (Apelação Cível 70075315549, 15ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relator: Vicente Barrôco de Vasconcellos, julgado em 6/12/2017).

2 AGRAVO DE INSTRUMENTO. RESPONSABILIDADE CIVIL. PROJETO SOLUÇÃO-DIRETA CONSUMIDOR. SUSPENSÃO DA AÇÃO. SOBRESTAMENTO. POSSIBILIDADE. Já se passaram décadas desde que Mauro Cappelletti indicou, como terceira onda renovatória do processo civil, a necessidade de identificação de situações que preferencialmente não devem ser equacionadas pela justiça ordinária, mas sim direcionadas para mecanismos alternativos de resolução de conflitos, tais como a mediação, arbitragem e outros. Assim, a iniciativa da Secretaria Nacional do Consumidor, do Ministério da Justiça, em parceria com o Poder Judiciário, instituindo o projeto “Solução Direta Consumidor” está perfeitamente afinado com todas as modernas tendências contemporâneas. Ou seja, a sociedade civil não pode suportar o custo de que Judiciário seja a primeira instituição a ser procurada para resolver os mais diversos problemas da vida de relação. Isso porque há um custo orçamentário enorme para a manutenção do Judiciário, que não pode e não deve ser ultrapassado. Portanto, o Judiciário deve ser a “última praia”, ou seja, quando realmente falharem os demais mecanismos disponíveis para solucionar conflitos, tem, sim, a parte, o direito constitucional de acesso à jurisdição. Todavia, quando o sistema propicia mecanismos ágeis, sem custo, para tendencialmente resolver de forma mais efetiva e rápida o litígio, é razoabilíssimo que se exija que a parte deles se utilize antes de ajuizar sua demanda. É de se manter, portanto, a decisão da origem, que determinou a suspensão do feito pelo prazo de 30 dias para que a parte demonstre ter tentado resolver a questão administrativamente. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. (Agravo de Instrumento 70063985626, 9ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relator: Iris Helena Medeiros Nogueira, redator: Eugênio Facchini Neto, julgado em 26/8/2015).

3 Veja nossa publicação desta mesma coluna em 15/3/2017 em https://www.conjur.com.br/2017-mar-15/garantias-consumo-meios-autocompositivos-podem-reduzir-vulnerabilidade-consumidor.

Fabiana D’Andrea Ramos é professora associada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutora em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mestre em Direito pela Universidade de Heidelberg (Alemanha) e 2ª vice-presidente do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

Fonte: ConJur


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