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16/05/2018

Após novo entendimento do STF, Defensoria faz primeiro mutirão para alterar documentos de trans

Ação, em Duque de Caxias, terá apoio do programa Rio Sem Homofobia

RIO - Em novembro, Daniela Fiorentino, de 27 anos, decidiu deixar uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) na Baixada Fluminense, mesmo com dores, depois de ter sofrido uma queda. Preferiu seguir sentindo-se mal a ter que ouvir, no sistema de áudio que encaminha os pacientes da unidade, um nome masculino que há muitos anos já não é mais o seu. A atendente, lembra, se recusou a cadastrá-la como Daniela.

Constrangimentos como esse, que acometem transexuais diariamente, estão mais perto de acabar para alguns deles. Nesta quarta-feira, véspera do Dia Mundial Contra a Homofobia, a Defensoria Pública vai promover, em Duque de Caxias, um mutirão para entregar ofícios de gratuidade e dar orientação a cidadãos que queiram uma nova certidão de nascimento, com nome e gênero com os quais se reconhecem. A ação é a primeira do tipo desde que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que essa mudança não precisa ser pleiteada por meio de uma ação judicial, e sim com um simples pedido em cartório. Basta comparecer com documento de identidade, CPF, comprovante de residência e certidão de nascimento e, após assinar um termo, pedir alteração dos dados e a emissão de uma nova certidão. A burocracia, no caso da via judicial, costuma ser tanta que a decisão pode levar anos — e demanda a entrega de laudos psicossociais e de saúde por parte dos solicitantes.

— Para mim, é uma realização. Às vezes, as pessoas não querem conceder a retificação civil porque acham que somos personagens. Mas personagens são os que estão aí (diz, apontando no nome de batismo na carteira de identidade). Não é minha realidade. Poder ser quem você é sem preconceito é muito importante — afirma Daniela, que trabalha como assessora na Secretaria estadual de Direitos Humanos e Políticas para Mulheres e Idosos.

Daniela conta que muitos cartórios, mesmo com a decisão dos ministros, ainda desconhecem a determinação e se recuram a protocolar os pedidos. Na Justiça, entrentanto, a situação não era muito diferente. Quem fazia o pedido ficava apreensivo, com medo de que o juiz do caso fosse preconceituoso:

— Tem juiz que, de cara, já nega. E tem outros que autorizam a mudança de nome, mas não a de sexo na certidão — ressalta a assessora. — Acredito que, agora, com essa liberação feita em cartório, as coisas melhorem, mas percebemos que muitos também continuam negando a solicitação.

Filha de pastores evangélicos, a jovem foi obrigada a lutar pelo respeito da família à sua identidade. E conseguiu: hoje todos têm boa convivência e, depois do fim de um relacionamento, ela voltou inclusive a morar com os pais:

— Eu tinha 18 anos quando falei para eles sobre o que eu sentia. Esperei a maioriade para entender a mulher que eu sou hoje. No início, é tudo muito difícil, mas com a inteligência que eles têm e o amadurecimento, a gente conseguiu se entender. Hoje, temos uma relação maravilhosa e moro com eles.

Já a cabeleireira Roberta Domingos, de 36 anos, também vai ao mutirão. Sofreu constrangimento parecido com o de Daniela há um mês, quando, ao renovar a carteira de habilitação, um supervisor do Detran insistia em chamá-la pelo nome masculino escrito na carteira de identidade.

— Eu infelizmente não tinha um documento para chamar a atenção dele — lamenta.

Ela conta que a mudança na certidão de nascimento e, consequentemente, em todos os documentos, facilita até o acesso da população trans ao mercado de trabalho. A própria Roberta diz que quase perdeu um estágio como técnica de mamografia por causa do nome constava na carteira: a diretora da clínica particular disse que isso lhe traria "problemas". Depois de conseguir uma carta de recomendação de seus chefes no hospital Moacyr do Carmo, onde trabalhava como técnica de exames de imagem, Roberta acabou ficando com a vaga.

— A gente não tinha respaldo nenhum, e esse novo documento dá uma base para reivindicarmos nossos direitos — afirma a cabelereira — A troca do nome, para mim, vai ser uma libertação.

Segundo a defensora pública Lívia Casseres, coordenadora do Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual (Nudiversis), o órgão começou a fazar encaminhamentos aos cartórios no dia 2 de maio, e só entre esse dia e 9 de maio, já havia recebido 91 pedidos de orientação e ofícios de gratuidade. De acordo com Lívia, nenhuma certidão foi emitida em cartório ainda, dentro de todos os casos que a defensoria acompanha. Ela conta que a Defensoria Pública da União já provocou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para que haja uma padronização dos procedimentos em cartórios.

— Entendemos que é um avanço bem importante, porque o Brasil ainda adotava um sistema muito discrminatório ao exigir uma chancela judicial para essas pessoas exercerem uma identidade. A gente espera a padronização dos procedimentos em cartório por meio de uma resolução do CNJ — observa a defensora.

Lívia explica que a Baixada foi escolhida para o primeiro mutirão por causa da demanda reprimida por esse serviço, ao qual, em geral, as pessoas encontram acesso mais facilitado na capital.

— Nessas regiões mais perifericas, é importante ter uma mobilização que até crie essa demanda e tenha um efeito também simbólico. Em regiões mais duras para as pessoas trans, medidas simbólicas são muito importantes — afirma.

Já o superintendente de políticas LGBT do programa Rio Sem Homofobia, Ernane Alexandre, diz que a ação promovida nesta quarta-feira é fundamental para reafirmar a busca por políticas afirmativas para a população LGBT:

— É mais um passo na luta em busca do respeito e da dignidade da pessoa humana, colocando um ponto final nas situações constrangedoras e discriminatórias pelas quais muitas dessas pessoas passam constantemente.

O mutirão começa às 13h, na sede da Defensoria Pública em Duque de Caxias (Avenida Perimetral Curupaiti, 201).

Fonte: O Globo


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