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04/07/2018

Burocracia imposta por CNJ para padronizar alteração de nome de pessoas Trans em cartório é criticada por especialistas

Foi publicado no dia 29, no Diário da Justiça, Provimento N. 73 do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, que dispõe sobre a averbação da alteração do prenome e do gênero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa transgênero no Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN).

A publicação era aguardada pela comunidade jurídica, como meio de uniformizar os procedimentos, em nível nacional, após o julgamento, no Supremo Tribunal Federal (STF), da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4275, em 01/03/2018, que reconheceu o direito dos transgêneros, que assim o desejarem, de substituírem prenome e sexo no registro civil, diretamente em cartório, sem a necessidade de prévia cirurgia de redesignação sexual.

O Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM  enviou, em 5 de abril, Pedido de Providências à Corregedoria Nacional de Justiça para edição de provimento de padronização do procedimento. A manifestação do IBDFAM buscava colaborar para o fiel cumprimento da decisão do STF.

“O Provimento 73 do CNJ trouxe a prometida regulamentação ao ato de averbação que altera o registro civil dos transgêneros, mas nos surpreendeu negativamente com o nível de dificuldade imposto à realização do ato”, observa a oficiala de registro civil, Márcia Fidélis Lima, membro do IBDFAM.

Para ela, o provimento está na contramão da decisão do STF. “Os requisitos impostos colidem com todos os demais atos declaratórios praticados no RCPN. Não há que se apresentar essas certidões para registrar um filho ou o óbito de um parente. Esses atos de registro e a averbação objeto do Provimento 73 têm em comum o fato de serem atos declaratórios, cuja responsabilidade civil e criminal por falsidade dessas declarações estão a cargo de quem declarou”, expõe.

Márcia esclarece: “Ainda nessa linha, não há exigências nesse nível quando duas pessoas, ao se casarem, alteram seus nomes, em alguns estados da federação podendo inclusive formar um sobrenome totalmente diverso do seu. Um filho maior reconhecido pelo pai ou pela mãe também altera seu sobrenome. E nenhuma dessas cautelas é exigida em nenhum desses procedimentos que também são administrativos, ou seja, perante o registrador civil. O julgamento pelo STF da ADI 4275 foi bastante claro no sentido de não poderem ser impostos requisitos”.

Tratamento diferenciado

A oficiala destaca, ainda, que foram determinadas regras diferentes do que normalmente ocorre em casos similares. “A alteração de prenome e sexo traz o mesmo impacto para o registro que a alteração de prenome por ordem judicial, quando ele é substituído por apelido público e notório ou por qualquer outro motivo. Não há a obrigatoriedade de se manter os dois nomes nos índices. Parece ser um detalhe pouco importante, mas a questão é que está sendo dado tratamento diferenciado justamente onde o que se propõe é trazer igualdade”, reflete.

Até o momento, 10 estados já haviam editado provimento regulamentando a prática cartorária para a realização da alteração. “Depois de dez estados editarem resoluções, provimentos para orientar os cartórios do registro civil sobre como proceder a alteração do nome das pessoas trans de forma administrativa, em face da decisão do Supremo Tribunal Federal,  de uma maneira surpreendente,  o CNJ, sem ouvir e sem atentar às resoluções já editadas nos estados acaba de baixar uma resolução com um caráter nitidamente preconceituoso”, avalia a desembargadora aposentada e advogada Maria Berenice Dias, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, presidente da Comissão de Direito Homoafetivo e Gênero do IBDFAM e presidente da Comissão Especial da Diversidade Sexual e Gênero do Conselho Federal da OAB.

Segundo o Provimento, a pessoa requerente deverá apresentar ao ofício do RCPN, no ato do requerimento, os seguintes documentos: I – certidão de nascimento atualizada; II – certidão de casamento atualizada, se for o caso; III – cópia do registro geral de identidade (RG); IV – cópia da identificação civil nacional (ICN), se for o caso; V – cópia do passaporte brasileiro, se for o caso; VI – cópia do cadastro de pessoa física (CPF) no Ministério da Fazenda; VII – cópia do título de eleitor; IX – cópia de carteira de identidade social, se for o caso; X – comprovante de endereço; XI – certidão do distribuidor cível do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal); XII – certidão do distribuidor criminal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal); XIII – certidão de execução criminal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal); XIV – certidão dos tabelionatos de protestos do local de residência dos últimos cinco anos; XV – certidão da Justiça Eleitoral do local de residência dos últimos cinco anos; XVI – certidão da Justiça do Trabalho do local de residência dos últimos cinco anos; XVII – certidão da Justiça Militar, se for o caso.

Maria Berenice Dias critica a exigência de tantos documentos, e ressalta que quando em casos similares, como quando a mulher adere o apelido de família do marido após o casamento, nenhum documento é exigido. “É uma tentativa de barrar o avanço significativo da decisão do STF. É, no mínimo, retrógrado. O CNJ tem mostrado um perfil que não corresponde aos avanços que a Justiça vem garantindo neste século à essa população tão vulnerável, que é a população LGBTQ+”, diz.

Márcia Fidélis aponta a falta de técnica quando o Provimento trata de alteração de prenome e “gênero” no registro. “Por mais que se saiba que o que será alterado de fato é o seu gênero, o STF determinou a alteração do ‘sexo’ do registrado. Não do gênero. Gênero nem é elemento que integre o registro civil de nascimento. É autopercebido. Por isso, não atingiria o objetivo da decisão proferida se dissesse que o gênero será alterado. O estado civil do sexo do indivíduo, estabelecido em seu registro de nascimento está sendo alterado para que ele seja socialmente visto como do seu real ‘gênero’”, diz.

Ela sugere alteração da legislação registral para corrigir o registro de nascimento de forma a atender melhor ao que a Corte Suprema entende por ser constitucional na alteração da identificação dos transgêneros. “Mas sem que essa alteração seja feita, não se pode alterar o que não existe no registro. E o STF expressou claramente que se refere a alteração de ‘sexo’ quando deu interpretação conforme a Constituição e o Pacto de São José da Costa Rica ao art. 58 da Lei 6.015/73, reconhecendo aos transgêneros o direito à substituição de prenome e sexo diretamente no Serviço de Registro Civil das Pessoas Naturais, independentemente da cirurgia de transgenitalização, ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes”, ressalta.

“Eu, ser humano, cidadã brasileira, entendo que esse Provimento 73 do CNJ foi um passo atrás, muito atrás, na busca sofrida de muitas pessoas que só querem ter seu real lugar no mundo. Sendo respeitadas, atendidas, e não violentadas ou alijadas da sociedade como são desde o princípio dos tempos”, reflete Márcia.

Fonte: CNJ


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