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    Por: MARCELO GUIMARÃES RODRIGUES* 
    
    Interessante e pouco debatida questão giza sobre a conveniência de os 
    cartórios serem públicos ou privados. 
     
    Um dos objetivos do denominado sistema do notariado latino é servir à 
    pessoa, espelhando os fatos jurídicos relativos à vida em sua dinâmica. O 
    registro público não é mero repositório de fatos engessados nas linhas de 
    leis escritas; ao contrário, sempre será o retrato fiel da vida, notável 
    laboratório humano de mudanças sucessivas e infinitas, a serviço do qual o 
    Direito justifica a sua existência, como insubstituível elemento edificante 
    e pacificador. 
     
    Neste passo, fica claro que, curiosamente, passamos toda a vida nos 
    relacionando diretamente com as atividades notarial e de registros e, ainda 
    assim, permanecem como um mundo envolto em desconhecimento, não só da 
    população, como até mesmo de alguns profissionais do Direito. 
     
    É correto dizer que os serviços que prestam os cartórios são os únicos 
    inteiramente comprometidos com a consecução das garantias da autenticidade, 
    segurança, eficácia e publicidade dos atos jurídicos mais importantes 
    previstos na lei civil (Lei dos Registros Públicos, art. 1º; Lei 8.935, de 
    1994, art. 1º). 
     
    A multiplicidade de situações fático-jurídicas que se apresenta aos 
    cartórios permite uma melhor compreensão de sua importância. 
     
    Quando se nasce, registra-se em cartório. O último suspiro também é 
    perpetuado nos livros e registros do cartório. Entre eles, a autenticação do 
    diploma para matrícula na faculdade, o contrato de financiamento do primeiro 
    carro, o casamento, a compra da casa própria, o registro do nascimento dos 
    filhos, a abertura de uma empresa, seja ela civil ou comercial, o registro 
    dos direitos decorrentes da produção literária, artística e científica, a 
    casa nova, a constituição da hipoteca, a separação, o divórcio, o testamento 
    para evitar a briga dos herdeiros e até mesmo o inventário. 
     
    Em suma, as grandes conquistas da vida se fazem diante de um notário e ou de 
    um registrador. 
     
    O cartório pode ser tomado, sem favor algum, como palco por excelência para 
    o grande teatro da vida civil. Neste descortino, os cartórios são uma 
    necessidade social. 
     
    que a legislação concernente aos registros públicos - no que se incluem as 
    leis federais 6.015, de 1973 e 9.492, de 1997 - diz respeito, em verdade, à 
    administração pública de interesses privados. E o Estado exerce controle 
    especial sobre tais interesses que, a despeito de privados, ultrapassam em 
    muito a esfera de disponibilidade das partes diretamente envolvidas, por sua 
    especial importância à segurança jurídica, bem maior que interessa à 
    organização e, porque não, à própria sobrevivência social, como corpo ético 
    destinado a promover os fins maiores do ser humano. 
     
    E as regras instrumentais nelas contidas são dirigidas não apenas aos 
    registradores públicos e tabeliães, como também aos magistrados, membros do 
    Ministério Público e servidores do Judiciários. E, last, but not least, aos 
    interessados nos assentos. O processo de registro, por exemplo, é público e 
    sofre interferência direta de todos os operadores do Direito. 
     
    Pontuada a importância da atividade, pode-se afirmar que possui natureza 
    jurídica peculiar, pois se intrinsecamente é de ordem pública - e tanto o é 
    que, por conveniência política, o Estado a delega à pessoa natural 
    qualificada -, sua gestão se faz em caráter privado. 
     
    Conforme preceitua o art. 236 da Constituição da República, regulamentado 
    pela Lei 8.935, de 1994, o ingresso na atividade se faz por meio de concurso 
    público de provas escritas, orais e de títulos. Após a aprovação e nomeação, 
    o titular do serviço se torna profissional do Direito dotado de fé pública, 
    com independência no exercício de suas funções. 
     
    Sua remuneração é fixada por meio de lei estadual (Lei de Emolumentos). Há, 
    aqui, duas notas dignas de registro: 1) os usuários remuneram esses 
    serviços; 2) que se sujeitam à fiscalização do Poder Judiciário (Tribunais 
    de Justiça dos estados e do Distrito Federal), bem como pelo Conselho 
    Nacional de Justiça (Constituição da República, art. 236 e seus parágrafos, 
    c.c. art. 103-B, ¹ 4º, III). 
     
    Todavia, não integram a estrutura do Estado, sequer como representantes, e 
    não se confundem com servidores públicos, em que pese o serviço por eles 
    prestado seja de índole pública (não faria sentido delegar serviço público a 
    quem já é servidor público - STF, RE 178.236-6-RJ). Constituem uma categoria 
    à parte de colaboradores do poder público, tais como os concessionários e 
    permissionários de obras e serviços públicos, leiloeiros, tradutores, 
    intérpretes etc. 
     
    O que poucos sabem, no entanto, é que há muito mais tempo (1885), consoante 
    averba Sérgio Jacomino, estudioso registrador de São Paulo, o imperador, por 
    intermédio do seu ministro Francisco Maria Sodré Pereira, regulamentou por 
    decreto o concurso público para notários e registradores, providência que 
    era de toda salutar (Decreto 9.420, de 28 de abril de 1885, art. 1). Tal 
    exigência foi ainda reiterada pela princesa regente pouco após, em 14 de 
    julho de 1887, pelo Decreto 3.322, em providência que honrou sua postura de 
    estadista. 
     
    O Brasil é mesmo um país curioso. A exigência do concurso público surgiu em 
    pleno Império, mas por uma dessas ironias que permeiam a peculiar história 
    brasileira foi justamente na República que a mais democrática modalidade de 
    ingresso em atividade de natureza pública foi deixada de lado e somente 
    restabelecida no ordenamento jurídico em vigor (Constituição da República de 
    1988), notadamente a partir da Lei 8.935, de 1994, que regulamentou o 
    dispositivo constitucional. 
     
    Salvo honrosas exceções, que apenas confirmavam a regra, desde então os 
    cartórios passavam de pai para filho. E, após longa espera, quando 
    retornou-se ao sistema adotado no Império, introduziu-se a novidade de se 
    exigir no próprio texto constitucional sua realização no prazo máximo de até 
    seis meses da data da vacância (¹ 3º, art. 236). Algo inédito em termos de 
    concursos públicos. Mas, como no Brasil o incomum não é tão incomum assim, 
    raramente tais prazos vêm sendo observados. Com efeito, a não-realização dos 
    concursos, ao menos na periodicidade exigida, se deve a diversos fatores, de 
    forma a autorizar, em tese, exame da responsabilização pelo não cumprimento 
    de sua regra. 
     
    Ao delegar o serviço para particulares, o poder público passa para os 
    titulares dos cartórios, entre outros importantes aspectos, a incumbência de 
    contratar e pagar os funcionários. 
     
    Apenas o Estado da Bahia ainda possui serviços notariais e de registros que 
    não foram delegados a particulares, ou seja, permanecem sob a gestão do 
    Estado (cerca de 957 estatizados e apenas 26 privados). A estatização dos 
    cartórios extrajudiciais na Bahia começou na década de 1960, no governo de 
    Antonio Carlos Magalhães. Embora a Constituição de 1988 tenha estabelecido 
    que o serviço deve ser prestado por particular sob delegação do poder 
    público, o Estado mantém os cartórios estatizados até hoje. 
     
    Segundo a Associação Nacional de Defesa dos Concursos para Cartórios (Andec), 
    um dos problemas que a estatização dos cartórios da Bahia traz é a má 
    qualidade do serviço prestado. Uma certidão de nascimento na Bahia demora 
    até 100 dias para ser fornecida, segundo Humberto Monteiro da Costa, 
    presidente da referida associação. A peculiaridade da situação dos cartórios 
    extrajudiciais baianos chamou a atenção do CNJ, que tomou a iniciativa de 
    pedir providências sobre o assunto (PP 200810000021537) e decidir pela 
    privatização, a fim de garantir que a legislação seja cumprida. O Conselho 
    Nacional de Justiça também determinou que as serventias extrajudiciais do 
    Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA) sejam privatizadas, na medida em que 
    seus titulares deixarem os cargos, por aposentadoria ou falecimento.  
    
    (Continua na próxima edição)  
    * Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG)  
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