ENTREVISTA
Averbação premonitória
Segurança do tráfego jurídico-imobiliário – efetividade do processo
Confira abaixo a íntegra da entrevista concedida pelo editor do BE,
Sérgio Jacomino, ao jornalista Vinicius Konchiski, do Jornal Agora São
Paulo, a respeito da Lei 11.382, de 2006.
Na longa entrevista – publicada em parte na edição de 8/1, o Conselheiro
do Irib e co-editor do BE traduz para o público não-especializado as
principais vantagens do novo sistema criado com a reforma do CPC.
VK – Quais são as principais alterações implementadas pela lei
11.382? Seriam a penhora on-line e averbação de execuções na matrícula
de imóveis? Tem mais alguma mudança importante para o público geral?
SJ – O mais importante, do ponto de vista da segurança jurídica
na aquisição de bens imóveis, é a "averbação premonitória" prevista no
artigo 615-A. Defino-a como "premonitória" porque tem a virtude de
prevenir a sociedade, e todas as pessoas que eventualmente venham
transacionar com imóveis, acerca de circunstâncias que possam pôr em
risco a aquisição do bem. Há poucos dias li num jornal de grande
circulação o drama de uma pessoa que empenhou os recursos poupados
durante toda uma vida na aquisição de um imóvel que logo depois foi
penhorado. Para livrar-se dessa tremenda dor de cabeça, o cidadão teve
que contratar advogado, provar que adquiriu o imóvel de boa-fé, que não
estava mancomunado, conluiado, com o vendedor para lograr eventual
credor, etc. É simplesmente um absurdo a pessoa ter que provar que é
honesta! Com essa anotação no Registro de Imóveis, tais problemas,
acredita-se, não se repetirão.
Depois, temos que pensar em termos econômicos. Quanto custa para o
cidadão comum cercar-se de toda a garantia na aquisição de um bem
imóvel? Qual o custo da diligência pré-contratual, na consideração de
que são milhões de transações que se entabulam país afora? Antes da Lei,
o candidato a proprietário tinha de peregrinar os fóruns cíveis,
trabalhistas, Justiça federal, cartórios de protesto, etc.,
diligenciando por informações sobre o vendedor a fim de evitar surpresas
desagradáveis – como uma execução em curso, por exemplo. A maioria de
nós, mortais comuns, não dispõe de tempo nem de expertise para cercar
todas as possíveis possibilidades de risco e o resultado é a busca de
intermediários, custos transacionais, burocracia... Uma verdadeira via
sacra.
Com a lei 11.382, de 2006, reforçou-se a necessidade de concentração de
todas essas informações que podem levar a risco na aquisição imobiliária
no registro. Com uma simples certidão de propriedade, expedida pelo
registro de imóveis, o candidato a proprietário de um imóvel poderá
saber se o bem está livre e desembaraçado de ônus ou restrições e
realizar, com segurança, o seu negócio.
A lei, por outro lado, pavimentou a base, criou uma infra-estrutura
legal, para que as transações entre o poder Judiciário e os cartórios de
registro se dêem por meio eletrônico. Estamos agora na dependência
unicamente do estabelecimento de regras e critérios uniformes que serão
baixados pelos tribunais para que, por exemplo, a penhora on-line seja
uma realidade. Os cartórios já têm uma infra-estrutura modelada para dar
curso a essas transações eletrônicas. A Associação dos Registradores
Imobiliários de São Paulo, por exemplo, em parceria com o Irib, já
mantém em funcionamento o sistema ofício eletrônico, por onde transitam
milhões de informações trocadas entre os cartórios e vários órgãos da
administração pública – como Vara de Execuções Fiscais, INSS, Receita
Federal, Justiça do Trabalho etc. Desde 1997, temos uma conta de quase 3
milhões de certidões expedidas cuja requisição foi feita por meio
eletrônico.
A Internet poderá ser utilizada como uma poderosa aliada da Justiça para
dar mais celeridade, publicidade, transparência, eficácia aos processos
executivos, podendo as alienações de bens constritos serem feitas "por
meio da rede mundial de computadores, com uso de páginas virtuais
criadas pelos tribunais", como dispõe o artigo 689-A do CPC.
VK – Quando as novas regras entram em vigor?
SJ – A lei entra em vigor 45 dias após a publicação. É que o veto
presidencial ao artigo sexto da lei 11.382 fez incidir a regra do artigo
primeiro da Lei de Introdução ao Código Civil (decreto-lei 4.657, de
1942), que reza: "salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em
todo o país quarenta e cinco dias depois de oficialmente publicada". A
lei 11.382 foi oficialmente publicada no dia 7 de dezembro de 2006, logo
entrará em vigor 45 dias após essa data.
VK – Os cartórios estão preparados para as mudanças? Eles apóiam
a lei? Como o IRIB vê a lei? O que precisa ser modificado nas estruturas
físicas e de informática dos cartórios para que tanto a penhora on-line
quanto a averbação “premonitória”, registro de dívidas na matrícula,
seja posta em prática?
SJ – Os cartórios estão plenamente preparados para a lei. Ao
longo dos últimos anos temos promovido amplos debates sobre a
importância do registro imobiliário para o desenvolvimento econômico e
social do país, trazendo especialistas da Europa e América Latina,
juristas e economistas para debater com os juristas brasileiros, e com o
próprio governo, a necessidade de reformar o sistema registral pátrio.
Os nossos interlocutores se admiravam com o fato de que cartórios
existem em praticamente todos os países do mundo e mais perplexos ainda
ficavam quando descobriam que os cartórios podem dar mais segurança às
transações jurídicas que têm por objeto bens imóveis, diminuindo os
custos transacionais necessários à formação da completa informação
acerca da situação jurídica do bem. A partir daí, as portas
ministeriais, dos tribunais, dos agentes econômicos, do setor produtivo,
se abriam, e as teses, que não são exclusivamente dos registradores, mas
da sociedade, eram então conhecidas, debatidas e afinal consagradas nos
textos legais. Essa lei é uma extraordinária peça de uma inteligente
engenharia jurídica.
Os cartórios apóiam a lei. Acreditam no acerto do rumo adotado – de dar
mais transparência ao mercado imobiliário, diminuindo custos e
eliminando, no grau possível, as inseguranças que guardavam essas
transações.
Sobre a informatização temos uma história de acertos. Os cartórios têm a
obrigação de remeter periodicamente à Receita Federal informações sobre
as transações imobiliárias. Essas informações, que integram a DOI,
declaração de operações imobiliárias, são transmitidas,
obrigatoriamente, por meios eletrônicos, à Receita Federal, e isso há
muito tempo. Então, os cartórios estão plenamente preparados para
recepcionar comandos eletrônicos, como mandados de registro de penhora
on-line etc., uma vez que já desenvolveram a info-via para o trânsito
dessas informações com a administração.
VK – Como vai funcionar a penhora on-line? Tenho que explicar
para o meu leitor como isso vai se dar na prática. Pelo que entendi da
lei, é assim: Caso um juiz determine a penhora de um imóvel, por
exemplo, não será mais necessário que seja expedido um documento (papel
físico) para que ele seja levado ao cartório. Agora, será enviada uma
ordem via sistema de computador para o cartório e o imóvel será
penhorado. Quais as vantagens e desvantagens?
SJ – Em primeiro lugar, observe que a lei previu que os tribunais
deverão instituir critérios uniformes para a penhora on-line. Note a
redação: "Art. 659, § 6º - Obedecidas as normas de segurança que forem
instituídas, sob critérios uniformes, pelos Tribunais, a penhora de
numerário e as averbações de penhoras de bens imóveis e móveis podem ser
realizadas por meios eletrônicos". Superada a fase regulamentar – o que
se imagina ocorra muito em breve – o sistema funcionará como v. sugeriu
na pergunta. O juiz dispara um pedido de informações sobre a existência
de bens imóveis registrados em nome do executado, ou o próprio exeqüente
indica os bens à penhora; em seguida o juiz determina a penhora e o
subseqüente registro do gravame no registro de imóveis competente. As
vantagens do sistema são a rapidez e a segurança em todo o processo. As
decisões judiciais serão eficazes, não se perderão em labirintos
burocráticos, papéis, correio, oficiais de justiça, etc.
VK – Como vai funcionar a averbação ”premonitória” na matrícula
de imóveis? Qualquer dívida executada de pessoa física poderá ser
averbada no registro? Por exemplo, se eu entrar com um processo de
cobrança contra alguém, caso essa pessoa tenha um imóvel, eu vou ao
cartório, mostro a certidão de que estou cobrando a dívida e registro a
pendência no imóvel? Existe um prazo para fazer isso? Se eu não
registrar, perco o direito de comprometer o imóvel? Depois que a lei
entrar em vigor, todos que estão cobrando dívidas de proprietários devem
registrar a dívida ou perderão o direito de penhora? Quais as vantagens
e desvantagens?
SJ – Vamos por partes. Qualquer dívida? Sim, em tese. Mas, para
evitar abusos, a lei criou um mecanismo de responsabilização para os
casos de averbação indevida. Não será tolerado o abuso de uma
prerrogativa que a lei criou para dar mais eficácia ao processo
executivo e segurança ao exeqüente. Não se tolerará abuso de direitos. O
artigo 615-A, parágrafo quarto diz que "o exeqüente que promover
averbação manifestamente indevida indenizará a parte contrária, nos
termos do § 2º do art. 18 desta Lei, processando-se o incidente em autos
apartados". Com isso, pensa-se que os abusos serão evitados. Funciona
assim: (a) O exeqüente (credor) distribui a ação de execução; (b) obtém
uma certidão comprobatória do ajuizamento da ação com dados sobre o
executado; (c) leva a certidão capeada por um requerimento dirigido ao
oficial do registro de imóveis solicitando a averbação premonitória; (d)
no prazo de dez dias da efetivação da averbação, o exeqüente deve
comunicar ao juiz as averbações feitas. Por outro lado, não existe prazo
para a averbação, porém recomenda-se, enfaticamente, que os
procedimentos sejam feitos imediatamente após a distribuição, pois o
tempo milita contra os interesses do exeqüente. Como se dará a inversão
do ônus da prova? Se o exeqüente não diligenciar a averbação
premonitória, ocorrendo a alienação do bem imóvel, presume-se que quem o
adquiriu o fez de boa-fé, cabendo, nesse caso, ao exeqüente, o ônus de
provar que a aquisição se deu em fraude. Isso é muito difícil, demanda
produção de provas, atrasa a execução, aumentam os custos, etc. Se,
entretanto, a averbação for feita, então o sistema marca indelevelmente
o imóvel e a alienação, nesses casos, se presumirá em fraude (art. 593
do CPC). Registrar ou não – eis a questão. Com a lei em vigor,
recomenda-se que averbação seja feita imediatamente.
VK – Apenas das ações que forem distribuídas a partir de então ou
de toda e qualquer execução?
SJ – Recomenda-se que em todos os casos seja feita a averbação –
salvo nos casos em que, por envolver valores módicos, a averbação
representaria um embaraço indevido ao exercício do direito de
propriedade. Não se esqueça de que a intervenção do Estado no direito de
propriedade, seja expropriando-a, seja criando embaraços e empecilhos, é
medida de caráter excepcional e essa nota de excepcionalidade vale
especialmente para o interessado, já que a mobilização da medida não é
decorrência de comando jurisdicional, mas prerrogativa criada pelo
sistema para blindar os seus interesses e processo executivo. Vantagens
e desvantagens. Há estudos econômicos expressando e quantificando os
enormes custos do processo judicial – custos esses que são suportados
pela sociedade como um todo, uma espécie de imposto social altamente
custoso. Pois bem, quanto custa produzir uma prova judicial? É disso que
estamos tratando. Com uma medida simples, barata, rápida e eficaz, o
autor de uma ação de execução estará blindando o patrimônio do executado
a fim de garantir o sucesso de um processo judicial e os seus próprios
interesses. Não fazer a averbação premonitória é apostar num jogo
complexo e confiar que os bens do executado serão mantidos para honrar
os compromissos inadimplidos. Sabemos que nessa fase da execução ocorre
uma dissipação patrimonial com o fim de frustrar a excussão. Para evitar
esse malogro, a lei criou mecanismos de publicidade para advertir os
membros da sociedade de que aquele bem determinado acha-se afetado à
sorte de um processo judicial. O exeqüente diligente terá que investir
muito pouco para alcançar essa garantia. Particularmente não vislumbro
desvantagens – salvo nos casos de averbação indevida. Mesmo nesses
casos, com a sedimentação da jurisprudência, haverá uma acomodação e
regularidade nos processos, e os abusos serão evitados.
VK – Esse sistema de registros tem a ver com a matrícula
unificada? O IRIB apóia a idéia? Existe uma proposta formal para
implantação da matrícula unificada? Como ela está? Segundo consta, já
existe um projeto de lei sobre o assunto. O senhor conhece o projeto? O
que acha dele?
SJ – A matrícula unificada é uma aberração – se pensarmos numa
espécie de super-cartório que atrairia todas as informações concernentes
ao patrimônio imobiliário. Custamos tanto para dar a cada imóvel uma
matrícula, criando uma espécie de "cédula de identidade" para cada
imóvel, com o que propiciamos uma visão completa da situação jurídica
relacionada com o dito imóvel, que pensar em desfazer essa
infra-estrutura é um absurdo inominável. Depois, a idéia de
circunscrições imobiliárias e o registrador natural é a concretização de
uma larga e bem-sucedida experiência que a história consagrou.
Entretanto, é possível criar um sistema de informações que permita o
compartilhamento de dados num grande portal – uma espécie de Google do
registro, que apontaria para os registros respectivos respondendo a
pesquisas que pudessem ser feitas sobre bens imóveis. Tenho insistido na
idéia de superação do paradigma da atomização dos serviços registrais
para alcançar a idéia de molecurização do sistema. A própria Febraban,
em setembro de 2006, convidou um registrador espanhol, o doutor Fernando
Méndez González, que proferiu ilustrativa palestra demonstrando que,
mantida a competência registral nos limites de uma circunscrição
imobiliária – território delimitado de atuação do registrador – ainda
assim é possível criar um mecanismo de pesquisa que, no caso espanhol,
abarca todos os registros imobiliários da Espanha. Não nos parece uma
boa idéia, por centenas de bons argumentos, criar um mega-cadastro
imobiliário, um big-brother patrimonial, que pudesse reunir todas as
informações sobre o patrimônio das pessoas. Isso seria pavoroso. O que
se pode fazer – e isso o Irib apóia – é criar mecanismos para se chegar
rápida, barata e seguramente às informações necessárias, sem malferir,
por exemplo, o direito constitucional à privacidade. O mercado necessita
dessas informações críticas, para realizar transações imobiliárias,
impulsionar o crédito imobiliário, dar segurança aos contratantes,
garantir a propriedade, garantir a circulação de bens, etc., mas não tem
necessidade de abarcar todas essas informações num super arquivo, que
isso seria contrário à própria idéia que inspirou e impulsionou a
criação dos registros imobiliários no século XIX. Os registros
brasileiros existem desde 1846, para dar segurança ao proprietário e
para terceiros que queiram contratar sobre os bens registrados; não
existem para inventariar os bens públicos e particulares. Não podem se
constituir em um censo patrimonial.
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