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    A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concluiu dois 
    julgamentos que aplicam as regras da união estável a relacionamentos 
    homoafetivos. Os processos concretizam o entendimento de que a legislação 
    brasileira garante direitos equivalentes ao da união estável para os casais 
    homossexuais.  
     
    Em um dos processos, o companheiro sobrevivente pedia o reconhecimento da 
    união afetiva que mantinha com o falecido por 18 anos. Eles teriam 
    construído patrimônio comum e adotado uma criança, registrada no nome apenas 
    do falecido. A criança nasceu portando HIV e adoeceu gravemente em razão de 
    doença de Chagas, exigindo atenção e internações constantes, o que fez com 
    que o companheiro sobrevivente abandonasse suas atividades profissionais e 
    se dedicasse integralmente ao filho. A irmã do falecido contestou afirmando 
    que o cunhado não contribuía para a formação do patrimônio e que a criança e 
    o irmão residiam com ela, que assumia o papel de mãe.  
     
    A justiça matogrossense, nas duas instâncias, reconheceu a união, 
    contrariando orientação do Ministério Público (MP) local. No recurso 
    especial ao STJ, a tese de violação à legislação federal foi renovada. O MP 
    Federal também se manifestou contrário ao reconhecimento da união estável. 
    Mas a ministra Nancy Andrighi, em voto proferido em 17 de março de 2011, 
    confirmou o entendimento do Tribunal de Justiça do Mato Grosso (TJMT). A 
    Turma, agora, após o julgamento do aspecto constitucional da matéria no 
    Supremo Tribunal Federal (STF), ratificou o voto da relatora.  
     
    Regime de bens e adoção  
     
    A ministra aplicou o princípio da analogia para reconhecer a viabilidade da 
    equiparação das relações homoafetivas ao conceito de união estável. “Assim 
    como já o fazem os casais heterossexuais, quando regulados pelo instituto da 
    união estável, na hipótese de os companheiros pretenderem dispor de forma 
    diversa acerca do patrimônio construído pelo esforço comum ao longo da 
    união, deverão formular estipulação escrita em sentido contrário, com as 
    especificações que reputarem convenientes”, explicou a relatora.  
     
    A relatora citou a sentença para justificar a manutenção do filho adotivo do 
    casal com o companheiro sobrevivente. “A criança estava crescendo abandonada 
    na instituição. Ao que tudo indicava o futuro de (...) seria crescer 
    institucionalizado, uma vez que como bem salientou o Douto Promotor de 
    Justiça recebeu um imenso legado de sua mãe, o vírus HIV. Por sorte a 
    criança conseguiu uma família substituta e hoje está recebendo o que lhe é 
    de direito, amor, carinho, atenção, saúde, escola e tudo o mais que toda 
    criança deve ter. (...) os laudos do Setor Interprofissional comprovam a 
    perfeita adaptação da criança com o adotante, bem como comprovam ainda a 
    real vantagem da adoção em prol do pequeno (...), pois este, enfim, 
    encontrou um pai que o ama e garante a ele a segurança do apoio moral e 
    material que lhe é necessário”, afirmou o juiz inicial.  
     
    Para a ministra Nancy Andrighi, “a dor gerada pela perda prematura do pai 
    adotivo, consideradas as circunstâncias de abandono e sofrimento em que essa 
    criança veio ao mundo, poderá ser minimizada com a manutenção de seus 
    referenciais afetivos”, que estariam, conforme reconheceu o TJMT, na figura 
    do companheiro sobrevivente.  
    Preconceito, afeto e liberdade  
     
    Outro caso concluído na mesma sessão tratou do falecimento de uma mulher, 
    cujas irmãs, ao arrolarem os bens deixados, desconsideraram o relacionamento 
    que mantinha há sete anos com a companheira. Também relatado pela ministra 
    Nancy Andrighi, o processo teve o julgamento iniciado em 8 de fevereiro de 
    2011.  
     
    Nele, o Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) reconheceu a convivência, mas 
    exigiu a comprovação da contribuição da companheira sobrevivente no 
    patrimônio da falecida, julgando o relacionamento sob as regras da sociedade 
    de fato e não da união estável. No STJ, o MPF manifestou-se, em parecer, 
    contra a união estável, mas oralmente, durante a sessão, opinou pelo 
    reconhecimento do direito de partilha da companheira sobrevivente.  
     
    “A proteção do Estado ao ser humano deve ser conferida com os olhos fitos no 
    respeito às diferenças interpessoais, no sentido de vedar condutas 
    preconceituosas, discriminatórias e estigmatizantes, sob a firme escolta dos 
    princípios fundamentais da igualdade, da dignidade e da liberdade do ser 
    humano”, afirmou a ministra Nancy Andrighi.  
     
    “O direito não regula sentimentos, mas define as relações com base neles 
    geradas, o que não permite que a própria norma, a qual veda a segregação de 
    qualquer ordem, seja revestida de conteúdo discriminatório. O núcleo do 
    sistema jurídico deve, portanto, muito mais garantir liberdades do que impor 
    limitações na esfera pessoal dos seres humanos”, acrescentou a relatora.  
     
    “O uso da analogia para acolher as relações de afeto entre pessoas do mesmo 
    sexo no berço do direito de família, suprindo, assim, a lacuna normativa, 
    com o consequente reconhecimento dessas uniões como entidades familiares, 
    deve vir acompanhado da firme observância dos princípios fundamentais da 
    dignidade da pessoa humana, da igualdade, da liberdade, da autodeterminação, 
    da intimidade, da não discriminação, da solidariedade e da busca da 
    felicidade, respeitando-se, acima de tudo, o reconhecimento do direito 
    personalíssimo à orientação sexual”, concluiu a ministra.  
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