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09/12/2025

Do registro à liberdade: como um assento de batismo em Ouro Preto selou o destino de Aleijadinho e revela a alma dos cartórios

Oficiala de Santo Antônio do Leite, Sílvia Patrocínio, ressalta o papel do registro como garantia de direitos e cidadania, e a importância da preservação dos acervos

Embora novembro, Mês da Consciência Negra, tenha passado, a reflexão sobre a história, a cidadania e o papel dos atos registrais na garantia de direitos deve ser contínua. É nesse espírito que a história por trás do registro do maior artista do Brasil Colonial, Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, é um convite a refletir sobre o poder de um ato registral. Em entrevista da Associação dos Notários e Registradores do Estado de Minas Gerais (Serjus-Anoreg/MG) com a oficiala Sílvia Patrocínio do Cartório Oliveira Patrocínio, em Santo Antônio do Leite, no município de Ouro Preto, a importância desse documento histórico é ressaltada, mostrando como a formalização de um registro pode ser um divisor de águas na vida de um indivíduo.

Em uma folha de um livro paroquial da antiga Vila Rica, no dia 29 de agosto de 1730, uma anotação mudaria para sempre a história da arte brasileira. O texto, lavrado na Matriz de Nossa Senhora da Conceição, registrava o batismo de "Antonio", filho de "Izabel, escrava de Manoel Francisco da Costa do Bom Sucesso". O menino viria a ser conhecido como Aleijadinho. Mas aquele registro era muito mais que uma certidão de nascimento: era sua carta de alforria.

A passagem essencial, que diz "...e deu o d. Seo Senhor por forro...", revela que o pai e senhor, o arquiteto português Manoel Francisco Lisboa, concedeu a liberdade ao próprio filho no momento do batismo. Em poucas palavras, um ato registral transformou um destino que seria de cativeiro em um caminho de liberdade. Sem aquele assento, o gênio do barroco mineiro poderia jamais ter tido a oportunidade de expressar seu talento.

Segundo a oficiala Sílvia Patrocínio, saber que o documento mais importante da vida de Aleijadinho, aquele que o concedeu nome, identidade e liberdade, nasceu de um ato de registro, "desperta uma profunda reflexão" e reafirma a função registral. "Não é burocracia, mas sim garantia de direitos, de cidadania, de memória e de pertencimento”.

O documento guardado pela Igreja antes da criação dos cartórios civis em 1889, cumpriu a função que hoje é a essência dos serviços notariais e de registro: garantir identidade, validar direitos e conferir cidadania. Apesar de sua importância histórica, o livro original que continha o registro de Aleijadinho se perdeu, o que reforça a necessidade de modernização e preservação dos acervos para garantir a memória e a segurança jurídica dos documentos.

 

Leia a entrevista completa com a Sílvia Patrocínio, onde ela detalha o paralelo entre o assento de batismo de Aleijadinho e a certidão de nascimento moderna, e a importância da preservação dos acervos históricos:

 

Serjus-Anoreg/MG – Ouro Preto respira a história de Aleijadinho. Como oficiala de um cartório na cidade, qual é a sua sensação ao saber que o documento mais importante sobre a vida dele — que lhe deu nome e liberdade — foi um ato de registro?

Sílvia Patrocínio - Como oficiala do Registro Civil das Pessoas Naturais com Atribuição Notarial de Santo Antônio do Leite, Ouro Preto, saber que um dos documentos mais importantes da vida de Aleijadinho - aquele que lhe concedeu nome, identidade e liberdade - nasceu de um ato de registro o que desperta uma profunda reflexão.

Nossa cidade respira a obra de Aleijadinho em cada igreja, cada escultura e cada pedra, esse legado só pôde existir plenamente porque houve o registro do seu nascimento através do batismo.

Isso reafirma a importância histórica e humana da função registral: não é burocracia, mas sim garantia de direitos, de cidadania, de memória e de pertencimento. Pensar que um simples ato de registro foi capaz de mudar o destino de um dos maiores artistas do Brasil reforça, todos os dias, a nossa responsabilidade como registradores.

Serjus-Anoreg/MG - Aquele registro foi feito pela Igreja, antes da existência dos cartórios civis. Que paralelo a senhora traça entre aquele assento de batismo e uma certidão de nascimento emitida hoje em seu cartório?

Sílvia Patrocínio - Antes da criação dos cartórios civis, a Igreja exercia a função de registrar oficialmente os principais eventos da vida das pessoas, como batismos, casamentos e óbitos. O assento de batismo de Aleijadinho, portanto, funcionava como um documento de identificação e comprovação de existência exatamente o papel que hoje é desempenhado pela certidão de nascimento emitida pelo Registro Civil das Pessoas Naturais.

O paralelo entre os dois documentos está na finalidade essencial de ambos: reconhecer juridicamente uma pessoa perante a sociedade. Enquanto o assento de batismo registrava nome, filiação, data e local do nascimento, servindo como prova de identidade, a certidão de nascimento moderna cumpre a mesma função, mas de forma laica, padronizada, universal e com fé pública estatal, garantindo cidadania e direitos civis desde o nascimento.

Em outras palavras, o antigo registro religioso era o antecessor direto da certidão de nascimento atual,  que marcava o início da vida civil do indivíduo, vale lembrar da fragilidade do registro de batismo, pois naquela época proteção e segurança jurídica eram precárias, no entanto, os assentos de registros civis dos dias atuais são amparados por segurança jurídica, modernização tecnológica, normas de proteção de dados, fiscalização judiciária, padrões unificados pelo Conselho Nacional de Justiça e preceitos legais.

Serjus-Anoreg/MG - O Mês da Consciência Negra nos convida a refletir sobre a luta histórica da população negra por direitos, como a história de Aleijadinho e seu registro de alforria dialogam com essa data?

Sílvia Patrocínio - O Mês da Consciência Negra é um período dedicado a reconhecer a resistência, a luta por direitos e a valorização das contribuições da população negra ao longo da história do Brasil. Nesse sentido, a trajetória de Aleijadinho e seu registro de alforria dialogam profundamente com essa data.

  1. Aleijadinho como símbolo da resistência negra

Embora por muito tempo sua identidade negra tenha sido apagada ou minimizada, hoje é amplamente reconhecido que Aleijadinho — filho de uma mulher negra escravizada — enfrentou, desde o nascimento, as estruturas racistas da sociedade colonial. Sua vida, marcada por discriminação e limitações impostas pela origem escravizada da mãe, reflete a realidade de milhares de pessoas negras no período.

  1. O registro de alforria e o significado da liberdade

O fato de existir um registro de alforria relacionado à sua história revela as camadas da luta por liberdade no Brasil escravista. A alforria, ainda que concedida por senhores ou adquirida por compra, representava um marco de resistência e afirmação de humanidade para pessoas negras. No contexto do Mês da Consciência Negra, esse documento simboliza a busca histórica de autonomia, dignidade e direitos algo ainda em contínua construção.

  1. Arte como forma de afirmação e legado

A obra de Aleijadinho, monumental e reconhecida mundialmente, é também uma forma de resistência. Ele ocupou espaços sociais e profissionais dos quais pessoas negras eram sistematicamente excluídas, deixando um legado que desafia a lógica colonial que tentava limitar a atuação de artistas negros.

  1. Diálogo com a data

Ao recordar Aleijadinho durante o Mês da Consciência Negra, refletimos sobre:

  • a presença pessoas negra na formação cultural do Brasil, muitas vezes silenciada;
  • a luta de pessoas negras para alcançar espaços de destaque na sociedade;
  • a importância de reconhecer a contribuição pessoas negras não apenas no passado, mas dos dias atuais;

Em suma, a história de Aleijadinho e seu registro de alforria nos conectam diretamente ao propósito do Mês da Consciência Negra: lembrar, valorizar e seguir fortalecendo a luta por igualdade e justiça racial no Brasil.

Serjus-Anoreg/MG - O livro original com o registro de Aleijadinho desapareceu. Que lição isso nos traz sobre a importância da preservação e da modernização dos acervos?

Sílvia Patrocínio - O desaparecimento do livro original que continha o registro de Aleijadinho nos traz lições sobre a importância da preservação da memória histórica e a necessidade de modernizar para garantir segurança e inviolabilidade dos acervos, especialmente quando se trata de documentos que registram a vida civil e a trajetória do cidadão brasileiro.

Aqui estão algumas reflexões que essa perda nos ensina:

  1. A fragilidade da memória histórica

Quando um documento físico desaparece, perde-se não só um objeto, mas também parte da história que ele carregava. Essa fragilidade mostra como a memória de grupos marginalizados — como a população negra — pode ser facilmente apagada, seja por descaso, racismo institucional ou falta de investimento em preservação.

  1. A importância da digitalização e da modernização dos acervos

A perda do livro reforça a necessidade de investir em tecnologias de conservação: digitalização, catalogação moderna, sistemas de backup, ambientes controlados e acesso público qualificado. Se o documento tivesse sido digitalizado ou preservado adequadamente, seu conteúdo não teria se perdido. A modernização impede que a memória dependa apenas de um suporte físico vulnerável.

  1. Preservação como ato político e de reparação

Garantir que documentos históricos — especialmente aqueles que registram a existência e as conquistas de pessoas negras — sejam preservados é uma forma de reparação e de enfrentamento ao apagamento histórico. A perda do registro de Aleijadinho lembra que a memória negra precisa ser protegida com prioridade.

  1. Acesso público e democratização da história:

Acervos modernizados permitem que estudantes, pesquisadores e a população em geral tenham acesso à história. Quando documentos desaparecem, restringe-se também o direito coletivo à memória.

  1. Responsabilidade das instituições:

O desaparecimento do registro de Aleijadinho mostra que arquivos, museus e instituições culturais precisam de políticas públicas contínuas, investimento financeiro e profissionais capacitados para evitar perdas irreparáveis.

Em síntese: o desaparecimento do livro que continha o registro de Aleijadinho nos faz um alerta: sem preservação, modernização, investimento tecnológico, profissionais capacitados, segura jurídica, proteção de dados, fiscalização judiciária, padrões unificados e amparo legal, a história contida nos acervos dos registros civis do país corre risco de ser apagada, especialmente a história dos negros. Investir no cuidado com os acervos é investir na memória, na identidade, na cidadania e na justiça histórica e social do país.

 

A Serjus-Anoreg/MG destaca que a trajetória de Antônio Francisco Lisboa, marcada por um registro que foi a chave para sua liberdade e para o florescimento de seu talento, serve como lembrete do papel fundamental que os cartórios e o ato de registrar desempenham na construção da cidadania e na preservação da memória histórica do Brasil.

 

Fonte: Assessoria de Comunicação Serjus-Anoreg/MG com informações do acervo aleijadinho.com.br

 


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