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02/05/2024

Jurisprudência mineira - Jurisprudência cível apelação cível – Ação declaratória – Inexistência de união estável – Nulidade da escritura pública – Invalidade do negócio jurídico – Agente incapaz

- A Escritura Pública de Declaração de União Estável, lavrada em notas de tabelião, nos termos do art. 215 do Código Civil, é documento dotado de fé pública, fazendo prova plena.

- Contudo, a validade do negócio jurídico requer o preenchimento dos requisitos descritos no art. 104, quais sejam agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável, forma prescrita ou não defesa em lei.

- Considerando que o interessado estava interditado quando da lavratura da Escritura Pública de Declaração de União Estável, impossível concluir pela validade do negócio jurídico celebrado.

- Todavia, a nulidade da Escritura Pública de Declaração de União Estável, por si só, não implica a inexistência de união estável, uma vez que o requerente não comprovou a ausência dos requisitos configuradores da união estável.

Apelação Cível nº 1.0000.21.036522-7/002 - Comarca de Formiga - Apelante: B.F.C. - Apelado: I.O. - Relator: Des. Carlos

Roberto de Faria.

Acórdão 

Vistos etc., acorda, em Turma, a 8ª Câmara Cível Especializada do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em dar parcial provimento ao recurso, nos termos do voto do 1º vogal, vencido parcialmente o Relator.

Belo Horizonte, 14 de março de 2024. - Carlos Roberto de Faria. – Relator.

Voto

DES. CARLOS ROBERTO DE FARIA - Trata-se de apelação cível, interposta por B.F.C., em face da sentença proferida pelo juiz da Vara de Família, Sucessões e Cível da Infância e da Juventude de Formiga, nos autos da ação declaratória de inexistência de união estável, proposta pelo apelante em desfavor de I.O.

O juiz julgou improcedente o pedido, nos seguintes termos:

“À vista do exposto, com fundamento no art. 487, I, do CPC, julgo improcedentes os pedidos insertos na inicial.

Condeno o requerente ao pagamento de custas, despesas processuais e honorários advocatícios, que arbitro em R$1.000,00 (um mil reais).

Interposto recurso em face da presente decisão, intime-se a parte recorrida para apresentar contrarrazões no prazo legal, com posterior remessa dos autos ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais.”

O apelante pede o provimento do recurso para reformar a sentença vergastada, a fim de se reconhecer e declarar a inexistência de união estável entre o falecido J.H.C.F. e a apelada. Por conseguinte, pede que seja declarada a nulidade da Escritura Pública de Declaração de União Estável lavrada à f. 87, do Livro 311, do Cartório do 1º Ofício de Notas da Comarca de Formiga/MG.

A apelada requer que seja negado provimento ao recurso, confirmando a existência da união estável entre ela e o genitor do apelante, no período de 2003 a 2020. Pede que o apelante seja condenado ao pagamento dos ônus da sucumbência, majorando os honorários fixados em primeira instância;

O Procurador de Justiça observou que a espécie não desafia intervenção do Ministério Público.

É o Relatório.

Conheço da apelação cível, porquanto presentes os pressupostos de admissibilidade, recebendo o recurso no duplo efeito, a teor do art. 1.012, caput, do CPC.

A análise dos autos revela que o autor, ora apelante, na qualidade de filho de J.H.C.F., falecido em 05.03.2020, busca a declaração de inexistência de união estável entre seu pai e a requerida, ora apelada, com a consequente declaração de nulidade da Escritura Pública de Declaração de União Estável lavrada à f. 87, do Livro 311, do Cartório do 1º Ofício de Notas da Comarca de Formiga/MG.

É certo que a Escritura Pública de Declaração de União Estável, lavrada em notas de tabelião, nos termos do art. 215 do Código Civil, é documento dotado de fé pública, fazendo prova plena. Contudo, não se pode olvidar que a validade do negócio jurídico requer o preenchimento dos requisitos descritos no art. 104 do mesmo diploma legal, a saber:

“Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:

I - agente capaz;

II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável;

III - forma prescrita ou não defesa em lei.”

E, no caso, é possível verificar que o genitor do apelante era portador de transtorno mental e, por isso, foi interditado judicialmente em abril de 2006, conforme comprovado pela Certidão de Interdição, lavrada pelo Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais de Formiga/MG.

Vale destacar trecho da sentença que decretou a interdição:

“O requerido deve, realmente, ser interditado, pois, examinado, conclui-se que é portador de transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de álcool, anomalia definitiva, conforme anotou o Sr. Perito no laudo de f. 35, acabando por afirmar que o seu estado é permanente, sendo que, em virtude da doença, é totalmente incapaz de reger sua pessoa e administrar seus bens.

Ressalto que a prova técnica veio apenas confirmar a impressão que se colheu no seu interrogatório de f. 31, de modo que o interditando é desprovido de conhecimento sobre bens e valores, não estando situado no tempo.

À vista do exposto, mais o que dos autos consta, decreto a interdição do requerido […], declarando-o absolutamente incapaz

de exercer pessoalmente os atos da vida civil, na forma do art. 3º, II, do Código Civil, e, de acordo com o § 1º do art. 1.775 do Código Civil, nomeio-lhe curadora a requerente, sendo os limites da curatela amplos.”

De fato, a partir da entrada em vigor da Lei nº 13.146, de 2015, que instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência e alterou o Código Civil, somente os menores de 16 (dezesseis) anos podem ser considerados absolutamente incapazes.

Com efeito, pela Lei nº 13.146/2015, a deficiência de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, não mais autoriza a imposição de uma curatela genérica sobre todos os atos da vida civil, mas apenas sobre aqueles de natureza patrimonial e negocial.

Sob essa nova ótica, a curatela deve ser interpretada como medida extrema e absolutamente excepcional para preservar a dignidade e os interesses da pessoa a ser curatelada e exercida de forma restritiva aos direitos de personalidade do curatelado, de forma proporcional às necessidades e circunstâncias de cada caso.

Contudo, essa nova disposição não pode ser aplicada de forma retroativa, a fim de alcançar ato praticado cinco anos antes, especialmente quando não comprovado que o interditado possuía discernimento para a prática dos atos da vida civil.

Portanto, no momento em que a Escritura Pública de Declaração de União Estável foi lavrada, em 03.03.2010, o genitor do recorrente já estava interditado judicialmente. Por isso, impossível concluir pela validade do negócio jurídico celebrado, uma vez que celebrado por agente incapaz, descumprindo o inciso I do art. 104 do Código Civil.

Nesse sentido é a jurisprudência deste Tribunal:

“Apelação cível. Ação anulatória de atos jurídicos c/c indenização por danos morais e materiais. Escritura de união estável e procuração por instrumento público. Pessoa interditada. Não observância das formalidades legais. Requisitos do dever de indenizar. Procedência. - Para que se configure a obrigação de indenização, é imprescindível a demonstração da ilicitude da conduta, da ocorrência de dano e o nexo de causalidade. - Os danos materiais não se presumem e devem ser comprovados pela parte requerente, sob pena de se configurar enriquecimento indevido. - Restando comprovado nos autos que, ao tempo da prática dos atos jurídico impugnados, a parte autora não tinha condições de exprimir validamente a sua vontade, em razão de sua interdição, é de se confirmar a sentença que declarou a nulidade de tais atos, bem como a condenação dos responsáveis na reparação dos danos morais e materiais sofridos. - Recurso desprovido” (TJMG - Apelação Cível 1.0000.22.296147-6/001, Relator: Des. Fausto Bawden de Castro Silva (JD Convocado), 9ª Câmara Cível, j. em 23.05.2023, p. em 29.05.2023).

Assim, dou provimento ao recurso para reformar a sentença e julgar procedente o pedido, declarando a inexistência de união estável entre J.H.C.F. e I.O. e a nulidade da Escritura Pública de Declaração de União Estável lavrada à f. 87, do Livro 311, do Cartório do 1º Ofício de Notas da Comarca de Formiga/MG.

Condeno a apelada a pagar as custas processuais e a pagar ao procurador do apelado os honorários advocatícios, que fixo em R$1.500,00 (um mil e quinhentos reais), suspensa a exigibilidade, em razão da justiça gratuita deferida.

DES. DELVAN BARCELOS JUNIOR - Peço vênia ao relator Des. Carlos Roberto de Faria para, respeitosamente, divergir parcialmente da conclusão de seu judicioso voto.

Acompanho o relator para reconhecer a nulidade da Escritura Pública de Declaração de União Estável lavrada à f. 87, do Livro 311, do Cartório do 1º Ofício de Notas da Comarca de Formiga/MG.

Entretanto, o fato de ser nula a escritura supra não leva necessariamente ao reconhecimento da inexistência da união estável entre o pai do apelante, Sr. J.H.C.F., e a apelada I.O.

Conforme se infere dos autos, é fato incontroverso que o falecido, J.H.C.F., era interditado desde 18.07.2006, conforme certidão de registro de interdição de ID nº 391543549.

No entanto, a Lei de Inclusão da Pessoa com Deficiência afirma expressamente, em seu art. 6º, que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, podendo o deficiente, inclusive, casar-se e constituir união estável. Por se tratar de matéria de ordem pública/lei de estado das pessoas, deve ter aplicação imediata, afastando a tese de inaplicabilidade da norma  supracitada exposta nas razões recursais.

No caso em tela, a causa de pedir do apelante para o pedido de declaração de inexistência de união estável é, tão somente, a nulidade da escritura supracitada (inicial de ordem 2). Inexiste, nas razões recursais (ordem 130), qualquer outro motivo justificável para que a declaração de inexistência da união estável possa ser reconhecida.

Conforme se infere do documento de ordem 8, o autor sequer foi curador de seu falecido pai e nem mesmo compareceu a seu velório, sendo totalmente desligado do cotidiano do falecido. As declarações contidas no depoimento de ordem 145 e 146 comprovam o total afastamento do autor do dia a dia de seu pai, não sabendo com quem este convivia.

A nulidade da Escritura Pública de Declaração de União Estável, lavrada à f. 87, do Livro 311, do Cartório do 1º Ofício de Notas da Comarca de Formiga/MG (ordem 10), datada de 03.03.2010 (ordem 17), desfaz apenas um ato formal e não pode ser utilizada como justificativa para desconsideração de eventual situação fática existente entre o Sr. J.H.C.F. e a requerida I.O.

União estável é fato. A análise dos requisitos para configuração da união estável deve centrar-se na conjunção de fatores presentes em cada hipótese, como a "affectio societatis" familiar, a participação de esforços, a posse do estado de casado, a continuidade da união, e também a fidelidade (REsp 1348458/MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. em 08.05.2014, DJe 25.06.2014) e não apenas em seu aspecto formal, como realizado neste processado.

O autor não alega, além da nulidade da escritura pública, qualquer outro motivo para que seja reconhecida a inexistência da união estável entre seu falecido pai e a requerida (ausência de união, objetivo de constituir família, esforço comum).

Nesse sentido, entendo que o requerente não desincumbiu do seu ônus probatório, consoante dispõe o art. 373, inciso I, do CPC, ou seja, comprovar os fatos constitutivos do seu direito, sendo certo que nem sequer tinha conhecimento acerca do cotidiano do seu genitor. Além disso, mesmo não tendo ciência acerca da vida do seu genitor, poderia o autor ter produzido prova testemunhal, a fim de comprovar as suas alegações de inexistência de união estável entre a requerida e J.H.C.F.

Contudo, embora tenha sido oportunizado, permaneceu inerte, não fazendo provas das suas alegações, sendo colhido apenas seu depoimento pessoal.

Por outro lado, inexiste, na contestação de ordem 50, pedido contraposto de reconhecimento da união estável.

Portanto, a meu juízo, deve ser mantida a improcedência do pedido de declaração de inexistência da união estável contida na r. sentença apelada.

Com tais considerações, acompanho parcialmente o relator, apenas para reconhecer a nulidade da escritura de Declaração de União Estável lavrada à f. 87, do Livro 311, do Cartório do 1º Ofício de Notas da Comarca de Formiga/MG e divirjo quanto à declaração de inexistência de união estável entre J.H.C.F. e I.O., haja vista que, ainda que a malsinada escritura não tivesse sido lavrada, a convivência more uxorio entre a apelada e o falecido, com o objetivo de constituição de família, seria suficiente para configurar a união estável.

É como voto.

DES.ª TERESA CRISTINA DA CUNHA PEIXOTO - Peço vênia para acompanhar a divergência.

No caso em análise, não obstante fosse o falecido interditado e, portanto, patente a nulidade da declaração de união estável, exatamente em vista da incapacidade, tem-se que a prova dos autos demonstra que vivia com a requerida que, por sua vez, era quem cuidava do mesmo, tendo, inclusive, verificado a sua morte.

Sobre o tema, tem-se que os artigos do Código Civil de 2002 que consideravam as pessoas com deficiência mental totalmente incapazes foram expressamente revogados, sendo que, sob a ótica da Lei nº 13.146/2015, a deficiência pode não afetar a plena capacidade da pessoa para os atos da vida civil.

Cumpre trazer à baila o disposto na Lei Federal nº 13.146/2015 (Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência - Estatuto da Pessoa com Deficiência):

“Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.”

“Art. 6º A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para:

I - casar-se e constituir união estável;

II - exercer direitos sexuais e reprodutivos;

III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;

IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;

V - exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e

VI - exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.”

“Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.

  • 1º Quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei.
  • 2º É facultado à pessoa com deficiência a adoção de processo de tomada de decisão apoiada.
  • 3º A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível.
  • 4º Os curadores são obrigados a prestar, anualmente, contas de sua administração ao juiz, apresentando o balanço do respectivo ano.”

“Art. 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial.

  • 1º A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.
  • 2º A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado.
  • 3º No caso de pessoa em situação de institucionalização, ao nomear curador, o juiz deve dar preferência a pessoa que tenha vínculo de natureza familiar, afetiva ou comunitária com o curatelado.”

Assim, conforme preceitua o caput do art. 84 da Lei nº 13.146/2015, “a pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas” e, nos termos do seu § 1º, somente “quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei”.

No caso em análise, não se afigura correto que a pessoa que cuidou do falecido e com ele permaneceu em união seja alijada em detrimento do filho, que nem sequer sabe relatar a rotina do pai.

Com tais considerações, adiro à divergência e mantenho parcialmente a sentença.

DES. ALEXANDRE SANTIAGO - No caso dos autos, com a devida vênia, acompanho a divergência inaugurada pelo eminente Desembargador 1º Vogal, por entender que a nulidade da Escritura Pública de Declaração de União Estável, por si só, não enseja o reconhecimento da inexistência da união estável, notadamente em virtude da ausência de provas acerca da inexistência dos requisitos configuradores da união estável.

DES.ª ÂNGELA DE LOURDES RODRIGUES - Peço vênia ao ilustre Relator para aderir ao voto parcialmente divergente, proferido pelo eminente 1º Vogal, porquanto, no caso concreto posto em análise, a nulidade da Escritura Pública de Declaração de União Estável, embora seja fato relevante, por si só, não é capaz de ensejar o reconhecimento da inexistência da união estável, já que não cuidou ele de demonstrar a ausência de preenchimento dos requisitos configuradores da união estável.

É como voto.

Súmula - DERAM PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO, NOS TERMOS DO VOTO DO 1º VOGAL, VENCIDO

PARCIALMENTE O RELATOR.

Fonte: Diário do Judiciário Eletrônico - MG


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