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06/06/2025

Artigo - O novo Direito de Retenção: Uma garantia não real, porque desprovida de preferência, mas dotada de sequela!

O atual CC português, de 1966, não prevendo o penhor legal, consagrou o direito de retenção enquanto direito real de garantia, no art. 754 e 755.

Segundo o art. 754, o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza de direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados.

Assim, são requisitos para existência do direito de retenção previsto no art. 754 do CC português: i) que o titular do direito detenha licitamente uma coisa que deva entregar a outrem; ii) que o titular do direito, obrigado à restituição da coisa, seja simultaneamente credor daquele a quem a deve restituir; iii) que entre os dois créditos exista uma relação de conexão1.

O 1.º do art. 755, do mesmo diploma legal, admite o direito de retenção com carácter excecional em relação ao transportador, albergueiro, mandatário, gestor de negócios, depositário, comodatário e beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que tenha obtido a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido. Referimos o carácter "excecional", porque em causa não está um direito de retenção que assegure a satisfação de um crédito resultante de despesas feitas por causa da coisa ou de danos por ela causados2.

Servindo a recusa de entrega da coisa para compelir o devedor ao cumprimento, dúvidas inexistem quanto à função compulsória do direito de retenção, bem como quanto a consubstanciar uma garantia de cumprimento lato sensu.

Acresce que, os direitos de retenção constituídos na constância do atual CC e antes da entrada em vigor do decreto-lei 48/24, de 25 de julho eram, todos, sem exceção, direitos reais de garantia, pois neles se encontravam as duas faculdades distintivas dos direitos reais de garantia, isto é, satisfação do crédito à custa do valor da coisa com preferência em face dos demais credores do devedor (quer comuns quer dotados de garantia real não prioritária)3. E tal, sem que o direito de retenção estivesse, ou esteja, sujeito a registo para consolidar a sua oponibilidade perante terceiros4.

Precisamente por em causa estar, sempre, um direito real de garantia, por um lado, apenas podiam (e podem) ser retidas coisas suscetíveis de serem objeto de penhora. E, por outro, recaindo o direito de retenção sobre coisa móvel, a posição jurídica do retentor era equiparada à do credor pignoratício (art. 758 do CC português); já quando o objeto do direito de retenção era um imóvel, o 1.° do art. 759.°, do mesmo diploma legal, atribuía ao retentor, enquanto não entregasse a coisa retida, a faculdade de a executar nos mesmos termos em que o podia fazer um credor hipotecário e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor5.

Por fim, o 2.º do art. 759, do diploma em apreço, introduzia uma exceção à característica da preferência, determinando que o direito de retenção prevalecia sobre a hipoteca, ainda que esta tivesse sido registada anteriormente. Esta solução compreendia-se tendo presente que o crédito garantido com o direito de retenção resultava, normalmente, de despesas com a fabricação, conservação ou melhoramento de coisa alheia, que beneficiavam todos e ser injusto que os restantes se locupletassem à custa de quem as havia realizado - o retentor. Na verdade, se as despesas para a manutenção e conservação da coisa não tivessem sido realizadas, a coisa poderia ter perecido e, então, nem o seu proprietário, nem o credor hipotecário, nem qualquer outro credor conseguiriam realizar o seu direito. Acresce que, os créditos garantidos pelo direito de retenção em regra correspondiam a quantias de pequeno montante, podendo, por isso, ser satisfeitos com relativa facilidade, assim se extinguindo o direito de retenção.

Nenhuma destas razões, sublinhe-se, justificava o direito de retenção do promitente-comprador, que tivesse obtido a tradição da coisa objeto do contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte (cfr. a al. f) do 1 do art. 755).

Tal direito foi consagrado na sequência das alterações de 1980 e 1986 ao regime do contrato-promessa e foi extremamente criticado pela doutrina portuguesa dominante. As intenções do decreto-lei 236/1980, de 18 de Julho eram claras: visava-se tutelar o promitente-comprador, de um imóvel destinado a habitação própria permanente, contra o risco de o promitente-vendedor não cumprir o contrato, por lhe ser mais vantajoso pagar o dobro do sinal, depois de alienar o imóvel a um terceiro por preço bem mais elevado, em virtude da inflação desenfreada que se vivia na época. Em suma, o legislador pretendeu desincentivar o incumprimento lucrativo do promitente-vendedor; no entanto, acabou por atribuir uma garantia privilegiada ao promitente-comprador, sempre que ocorresse traditio, mesmo que o objeito do contrato não se destinasse a habitação própria permanente do promissário.

Ora, como referido, nenhuma das circunstâncias que estavam na base do comum das situações geradoras do direito de retenção (conexão funcional entre o crédito e a coisa e reduzido montante da quantia em dívida) se verificava nos casos de promessa de compra e venda (com entrega da coisa que fosse objeto do contrato prometido). Efetivamente, nada garantia que a quantia entregue a título de sinal ao promitente-vendedor tivesse sido empregue na construção ou valorização do imóvel. Ademais, os créditos, derivados do incumprimento da promessa, podiam ser de valor idêntico ao da coisa, o mesmo é dizer, ascender a um montante, em regra, bastante elevado. Por fim, a prioridade concedida ao promitente-comprador não se revelava justa, uma vez que, aquando da celebração do contrato, ele conhecia ou não devia ignorar a existência de uma hipoteca que, recordamos, apenas se constitui com a inscrição registral.

Ocorre que o decreto-lei 48/24, de 25 de julho, veio alterar o exposto quanto ao direito de retenção que tenha por objeto imóveis.

No sumário do referido diploma legal pode ler-se: "Limita as situações em que o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca".

E, no preâmbulo do decreto-lei o legislador português, além do mais, afirmou:

"[O] presente decreto-lei procede ao reforço da hipoteca perante o direito de retenção, que, até à data, prevalecia de forma absoluta sobre a primeira.

A posição do credor hipotecário é reforçada através da limitação da prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca anteriormente registada aos casos em que a não consagração desta solução conduz ao locupletamento do credor hipotecário à custa do titular do direito de retenção. Estas situações ocorrem sempre que o titular do direito de retenção realizou despesas com o imóvel com vista à sua conservação ou aumento do seu valor.

Consequentemente, altera-se o regime legal no sentido de condicionar a prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca anteriormente registada à circunstância de o crédito garantido assegurar o reembolso de despesas feitas com o imóvel que tenham contribuído para o conservar ou para aumentar o respetivo valor."

Para atingir o objetivo anunciado, teria bastado ao legislador português alterar a redação do 2.º do art. 759.°, nele passando a ler-se "o direito de retenção prevalece, sobre a hipoteca ainda que esta tenha sido registada anteriormente, exceto no caso previsto no art. 755, 1, alínea f).".

Não obstante, o legislador português alterou a redacção do 1.° e do 2.° do art. 759, de forma bem diversa do afirmado no referido sumário e preâmbulo transcritos, passando tal preceito legal a estatuir:

"1 - Recaindo o direito de retenção sobre coisa imóvel, o respetivo titular, enquanto não entregar a coisa retida, tem a faculdade de a executar, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de, nos casos em que o crédito assegura o reembolso de despesas para a conservar ou aumentar o seu valor, ser pago com preferência aos demais credores do devedor.

2 - Nos casos previstos na parte final do número anterior, o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente."

Deste modo, foi retirada a preferência ao direito de retenção que tenha por objeto um imóvel e garanta créditos resultantes de danos por ele causados ou assegure qualquer crédito previsto no art. 755.°, concedendo-se, nestes casos, apenas ao retentor o poder de executar a coisa nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário.

Portanto, em tais casos, o direito de retenção deixou de ser um direito real de garantia.

Porquanto, atualmente, é inquestionável que a soberania que confere um direito real de garantia não se traduz apenas no poder de o seu titular satisfazer o seu crédito, à custa do valor da coisa onerada, mediante recurso à venda judicial, mas sim no poder de o seu titular promover tal venda, de modo a satisfazer o seu crédito, à custa do valor da coisa onerada6, com preferência sobre os credores comuns, bem como sobre os credores que disponham de uma garantia de grau inferior.

De facto, é hoje inequívoco que a característica da preferência é conatural a um direito real de garantia. Uma garantia real desprovida de prioridade ou de preferência é algo de inconcebível, porque contrária à soberania própria do direito real em apreço. Ou seja, tal como não se pode falar de um qualquer direito real destituído de eficácia erga omnes e de um direito real de gozo desprovido de prevalência, também não se pode falar de um direito real de garantia sem preferência ou prioridade.

Sublinhe-se ainda, que, sendo certo que é ao legislador que compete elencar os direitos reais - em virtude do princípio da taxatividade -, tal como determinar o critério pelo qual se fixa o grau dos direitos reais de garantia, também é incontroverso que não lhe cabe dar a definição de direito real e está-lhe vedada a possibilidade de prever a existência de um direito real destituído de eficácia erga omnes, uma vez que tal eficácia não é mais do que um corolário da soberania que caracteriza o ius in re.

Portanto, repisamos, através do decreto-lei 48/24, de 25 de julho,  o ordenamento jurídico português consagrou um direito de retenção que não é garantia real - o direito de retenção que tenha por objeto um imóvel e garanta um crédito resultante de danos por ele causados ou um qualquer crédito previsto no art. 755 - a par com o direito de retenção que manteve a sua natureza real inalterada: i) o que têm por objeto móveis - quer assegure a satisfação de um crédito resultante de despesas feitas por causa da coisa (para a conservar ou aumentar o seu valor) ou de danos por ela causados, quer garanta a satisfação de um crédito previsto no art. 755; ii) o que têm por objecto imóveis se assegurar a satisfação de um crédito resultante de despesas feitas por causa da coisa (para a conservar ou aumentar o seu valor).

Consequentemente, na hipótese de um imóvel retido ser nomeado à penhora em ação executiva proposta por outro credor, segundo o nosso entendimento, ao retentor, destituído de preferência, não deve reconhecer-se o poder de recusar a entrega da coisa, porquanto tal faculdade consubstanciaria, na prática, uma preferência indireta e especial, que colocaria o retentor na posição de estar sempre salvaguardado no pagamento do seu crédito, com preferência sobre todos os outros credores, por mais privilegiados que eles fossem. De facto, reconhecer tal poder ao retentor conduziria a que reconhecesse que a retenção, que não concede qualquer preferência suscetível de ser feita valer diretamente na graduação dos créditos, atribuiria uma preferência indireta, mais forte do que a direta, visto que os outros credores só poderiam executar o imóvel retido pagando o crédito do retentor ou caucionando o pagamento. O que, obviamente, contrariaria clamorosamente o fim visado - mas não declarado no preâmbulo - pelo legislador, com o decreto-lei 48/24, de 25 de julho: retirar a preferência ao retentor de um imóvel quando o crédito não seja o de reembolso por despesas feitas por causa da coisa (para a conservar ou aumentar o seu valor).

Acresce que o retentor de um bem imóvel, desprovido de preferência, não pode reclamar os seus créditos em ação executiva proposta por outrem, pois o processo de execução deixou de ter em Portugal, desde 1961, o carácter coletivo universal que anteriormente revestia - e o aproximava da falência ou da insolvência civil -, só admitindo a intervenção dos credores cujos créditos, mesmo que ainda não vencidos, estejam assegurados por uma garantia real anterior sobre os bens penhorados na execução e que disponham de título executivo (art. 788 do CPC português)7.

Não se extinguido o direito de retenção - e muito menos o crédito do retentor - em virtude da entrega não voluntária da coisa, ocorrida em virtude da penhora efetuada em ação executiva proposta por outro credor, restará ao retentor, desprovido de preferência, a possibilidade de intentar nova ação executiva e nomear à penhora o bem até ali retido, para, após a sustação da execução por si movida, reclamar o seu crédito no processo mais antigo (art. 792)8 e, assim, tentar satisfazê-lo. Isto, claro está, se o imóvel em causa tiver "forças" para suportar a satisfação dos créditos dos titulares das garantias reais feitas valer na ação executiva e ainda o crédito do retentor. 

Por fim, cumpre dar resposta à questão de saber que poderes pretendeu o legislador atribuir ao titular do novo direito de retenção, destituído de preferência, ao afirmar que este pode "executar a coisa nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário".

Na nossa perspetiva, equiparando o legislador o retentor ao credor hipotecário, outros bens só poderão ser nomeados à penhora se o valor do imóvel retido se revelar insuficiente para a satisfação da dívida exequenda (penhorabilidade subsidiária). De facto, esta é a solução imposta pelo 1.º do art. 752 do CPC: "[e]xecutando-se dívida com garantia real que onere bens pertencentes ao devedor, a penhora inicia-se pelos bens sobre que incida a garantia e só pode recair noutros quando se reconheça a insuficiência deles para conseguir o fim da execução".

Intentando o retentor do bem imóvel, desprovido de preferência, ação executiva, beneficiará apenas da preferência concedida ao exequente em virtude da penhora (vide, art. 822, 1: "o exequente adquire pela penhora o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior"), não sendo a sua posição muito diversa da posição de um qualquer credor comum, uma vez que também este pode dar início ao processo de execução e nomear à penhora quaisquer bens que façam parte do património do devedor que não sejam impenhoráveis, apenas devendo o credor comum obedecer ao princípio da proporcionalidade e à regra da adequação9-10.

Caso o retentor de um imóvel, destituído de preferência - por o seu crédito não resultar de despesas feitas por causa da coisa (para a conservar ou aumentar o seu valor) -, intente a ação executiva, os credores com direitos reais de garantia sobre os bens penhorados, registados em data anterior à do registo da penhora, poderão reclamar os seus créditos - após serem convocados (arts. 786, b), e 788, 1, ambos do CPC) - e ser pagos, após a verificação e graduação dos créditos, com preferência ao retentor exequente (art. 822 do CC e 796, 2, do CPC), que só terá a seu favor a preferência resultante da penhora.

Acrescente-se, ainda, que, segundo o nosso entendimento, projetando o retentor, desprovido de preferência - por o seu crédito não resultar de despesas feitas por causa do imóvel (para o conservar ou aumentar o seu valor), intentar ação executiva, não verá a sua pretensão obstaculizada pelo facto de o devedor haver alienado ou onerado com um direito real de gozo a coisa retida, pois, de acordo com a letra da lei, o retentor: "pode executar a coisa nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário"11. Nesta hipótese, a ação executiva apenas há-de ser movida contra o terceiro adquirente (cfr. 2 do art. 735 do CPC português).

Ora, assim sendo, o direito de retenção sobre imóvel, agora desprovido de preferência - por o crédito assegurado não resultar de despesas feitas por causa do imóvel (para o conservar ou aumentar o seu valor) -, continua a beneficiar de sequela e a prevalecer perante um direito real de gozo posteriormente constituído.

Fonte: Migalhas


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