Por Antonio Carlos de Souza Jr. e Roberto Paulino de Albuquerque Júnior
O Código Tributário Nacional (CTN), em seu artigo 185, estabelece uma presunção de fraude que se caracteriza pela objetividade de seus critérios. Diferentemente de outras modalidades de fraude que exigem a demonstração do elemento subjetivo (dolo ou má-fé), a fraude à execução fiscal baseia-se em critérios puramente objetivos.
O artigo 185 do CTN dispõe que “presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa“.
O parágrafo único do artigo 185 do CTN estabelece uma importante exceção à presunção de fraude: “O disposto neste artigo não se aplica na hipótese de terem sido reservados, pelo devedor, bens ou rendas suficientes ao total pagamento da dívida inscrita“. O escopo desta exceção é evitar que a presunção de fraude prejudique alienações legítimas quando o patrimônio do devedor é suficiente para garantir o pagamento da dívida tributária.
Ademais, o STJ, no julgamento do Tema Repetitivo nº 290, consolidou entendimento segundo o qual “a terceiro de boa-fé que adquire imóvel de devedor em débito para com a Fazenda Pública, mesmo sem conhecimento da existência da dívida, pode ser oposta a presunção absoluta de fraude à execução fiscal de que trata o art. 185 do CTN“.
No entanto, uma das questões mais controversas relacionadas ao tema é a aplicação da presunção de fraude às alienações sucessivas. O STJ tem entendido que a presunção se estende automaticamente a todas as alienações posteriores, criando uma verdadeira “cadeia de contaminação” (vide: REsp 1.820.873/RS, REsp 2.139.946/SP, REsp 1.833.644/PB, entre outros no mesmo sentido).
O STJ tem justificado este entendimento com base em diversos fundamentos, entre eles: (i) o CTN, como lei especial tributária, possui primazia sobre o Código de Processo Civil em matéria de fraude à execução fiscal e; (ii) teoria da contaminação: o vício existente na origem da cadeia sucessória contamina todas as alienações posteriores.
O tribunal superior, porém, não vem analisando uma importante questão sobre a fraude à execução fiscal, qual seja: existência de um prazo legal para o reconhecimento da ineficácia da alienação e, por conseguinte, a desconstituição dos atos de registro e transferência dos imóveis.
Usucapião
Entendemos que a resposta da questão está no instituto da usucapião, previsto na Constituição (vide: artigo 183 e artigo 191) e regulado no Código Civil. Inicialmente, deve-se destacar que o artigo 185 do CTN não trata do tema e, portanto, não existe uma norma tributária especial tratando da matéria, motivo pelo qual podemos aplicar as regras de direito privado, nos termos do artigo 4º, §2º, da Lei nº 6.830/1980.
Como sabido, a usucapião constitui forma originária de aquisição da propriedade fundamentada na posse prolongada, acompanhada de determinados requisitos legais. O Código Civil brasileiro estabelece diferentes modalidades de usucapião, com prazos variados conforme a presença ou ausência de justo título e boa-fé.
Em outras palavras, trata-se de um marco de estabilização definitiva das relações jurídicas patrimoniais. Esta característica fundamental do instituto determina que, uma vez consumada a usucapião, torna-se irrelevante discutir vícios que tenham maculado alienações anteriores, incluindo-se aqui a fraude à execução fiscal.
É importante recordar que a Lei de Registros Públicos não admite o reconhecimento da nulidade de ato registral após a consumação da usucapião em favor de terceiro adquirente de boa-fé (“art. 214, §5º: A nulidade não será decretada se atingir terceiro de boa-fé que já tiver preenchido as condições de usucapião do imóvel”).
O Superior Tribunal de Justiça tem se mostrado sensível à aplicação da regra jurídica em questão:
DIREITO CIVIL. AGRAVO INTERNO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE DE ATO JURÍDICO. PROCURAÇÃO. INCLUSÃO FRAUDULENTA DE PODERES PARA CESSÃO ONEROSA DE BEM IMÓVEL. NULIDADE DO ATO. OCORRÊNCIA. ARGUIÇÃO, COMO MATÉRIA DE DEFESA, DO IMPLEMENTO DOS REQUISITOS DA USUCAPIÃO ORDINÁRIA. POSSIBILIDADE. NULIDADE QUE NÃO ATINGE TERCEIRO DE BOA-FÉ. USUCAPIÃO COMO FORMA DE AQUISIÇÃO ORIGINÁRIA DA PROPRIEDADE.
NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DOS REQUISITOS DOS ARTS. 520, 551 e 552, DO CC/2016. AGRAVO NÃO PROVIDO.
(AgInt no REsp n. 1.690.979/SC, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 29/5/2023, DJe de 1/6/2023.)
Se mesmo a nulidade, sanção mais grave imposta pelo sistema em defesa da ordem pública, não pode prevalecer contra a usucapião, com maior razão se deve afastar a ineficácia decorrente da fraude à execução se o terceiro de boa-fé já preenche os requisitos para usucapir.
A compreensão da usucapião como limite temporal para o reconhecimento da fraude à execução fiscal produz efeitos práticos de grande relevância para a segurança jurídica das relações patrimoniais. Em primeiro lugar, estabelece marco temporal definitivo para a estabilização das relações jurídicas, impedindo questionamentos indefinidos sobre a validade de alienações pretéritas.
Em segundo lugar, privilegia a proteção daqueles que, confiando na aparência de regularidade das transações, investem recursos e estabelecem vínculos duradouros com o imóvel. Esta proteção harmoniza-se com os princípios constitucionais da segurança jurídica e da função social da propriedade.
Por fim, impede que o instituto da fraude à execução fiscal seja utilizado de forma abusiva, criando insegurança jurídica desproporcional aos objetivos de proteção do crédito tributário. A existência de marco temporal definitivo para questionamentos contribui para o equilíbrio entre os interesses fazendários e a proteção dos terceiros de boa-fé.
A ausência de marco temporal definitivo para tais alegações criaria situação de insegurança jurídica incompatível com os princípios fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro.
Neste contexto, a fluência do prazo usucapional deve ser compreendida como elemento de estabilização definitiva das relações jurídicas, tornando inadmissível a posterior alegação de fraude à execução.
Logo, a análise sistemática dos institutos da fraude à execução fiscal e da usucapião revela a existência de lógica temporal coordenada, na qual a usucapião funciona como limite natural para o reconhecimento da fraude à execução, o que se aplica integralmente à execução fiscal, pois o CTN não tratou da questão quando regulou a fraude à execução fiscal.
Fonte: Conjur