PL permite que os tabeliães de protesto assumam a cobrança de dívidas em fase de execução, sem necessidade de acionar o Judiciário
Está em pauta no Congresso o Projeto de Lei nº 6.204/2019, de autoria da senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS), que propõe a chamada desjudicialização da execução civil. Em termos simples, a ideia é permitir que os tabeliães de protesto assumam a cobrança de dívidas em fase de execução, sem necessidade de acionar o Judiciário.
Atualmente, após protestar um título sem pagamento, o credor precisa ajuizar uma ação de execução para tentar receber; com o projeto, ele poderá optar por fazer essa cobrança diretamente em Cartório de protesto, de forma extrajudicial.
Segundo a senadora Soraya, essa medida traria benefícios expressivos ao país. “A desjudicialização dos títulos executivos extrajudiciais e judiciais condenatórios de pagamento de quantia certa representará uma economia de R$ 65 bilhões para os cofres públicos… propõe-se um sistema normativo novo, mas já suficientemente experimentado, com êxito no direito estrangeiro”, afirma a autora do projeto. Em outras palavras, o Brasil adotaria um modelo de execução de dívidas que já funciona em diversos países da União Europeia, onde a cobrança fora dos tribunais é uma realidade consolidada.
Ainda de acordo com Soraya, a lentidão e ineficácia das execuções judiciais atuais causam impacto negativo na economia: “Diante deste cenário caótico, não é difícil concluir que os impactos negativos econômicos são incalculáveis, na exata medida em que bilhões em créditos anuais deixam de ser satisfeitos, impactando diretamente o crescimento nacional”.
O projeto de Soraya Thronicke ganhou tração política em 2025. Ele voltou a tramitar na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado e foi incluído na lista de prioridades legislativas do Governo Federal para o ano. A senadora Soraya ressalta o diálogo com o governo e defende o protagonismo dos Cartórios: “Os Cartórios de Protesto têm um papel crucial, sendo capazes de atuar como agentes de execução”, argumentou, explicando que os tabeliães de protesto teriam estrutura e capilaridade para cumprir essa atribuição de maneira eficiente.
Mas como funcionaria, na prática, essa execução extrajudicial das dívidas?
O projeto de lei detalha o procedimento nos Cartórios de protesto. De acordo com o texto, “o procedimento executivo extrajudicial inicia-se com a apresentação do título protestado ao agente de execução, que deverá citar o devedor para pagamento em cinco dias, sob pena de penhora, arresto e alienação”. Ou seja, passados os três dias do protesto sem pagamento voluntário, o credor poderia requerer ao tabelião (agora atuando como agente de execução) que intime formalmente o devedor; se em cinco dias a dívida não for quitada, o Cartório já poderia proceder à penhora de bens ou bloqueio de valores, e depois à venda forçada dos bens penhorados, tudo isso sem intervenção inicial de um juiz.
Importante destacar que o devedor manterá seu direito de defesa: ele poderá apresentar suas contestações ao próprio agente de execução (para esclarecer dúvidas ou apontar eventuais ilegalidades nos atos) e também ingressar com embargos à execução dirigidos a um juiz, caso entenda necessário. O PL assegura o contraditório e a ampla defesa, prevendo que “o devedor poderá (…) impugnar atos praticados pelo agente de execução (…) ou opor embargos à execução, perante o juízo de direito competente”. Em última instância, portanto, o Poder Judiciário permanece como garantidor dos direitos das partes, mas atuaria somente se fosse provocado em alguma disputa específica, todo o trâmite inicial de cobrança ocorreria administrativamente no Cartório.
Vale lembrar que a execução extrajudicial não seria possível em todos os casos. O próprio projeto lista exceções: incapazes, presos, entes de direito público, massas falidas e insolvências civis continuariam sujeitos apenas à via judicial. Além disso, dívidas de pensão alimentícia permaneceriam sob execução obrigatória na Justiça (por envolverem liberdade pessoal do devedor). Para as demais dívidas comprovadas em títulos executivos (como contratos, boletos, cheques, notas promissórias, dívidas fiscais, sentenças judiciais condenatórias, etc.), passaria a existir essa “via alternativa” de cobrança nos Cartórios de protesto. O credor, assistido por um advogado, poderia escolher entre acionar o Judiciário ou o Cartório para executar seu crédito, conforme sugestão feita no relatório do senador Marcos Rogério em 2022. Em resumo, o PL 6.204/2019 busca simplificar e agilizar a cobrança de obrigações não pagas, transferindo parte das execuções civis para a esfera extrajudicial, com amparo legal e sob fiscalização das corregedorias de justiça.
O impacto no Judiciário
A motivação central do projeto é o grave congestionamento de processos no Poder Judiciário brasileiro, especialmente na fase de execução de dívidas. Dados do relatório Justiça em Números 2024 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) indicam que há cerca de 84 milhões de processos em tramitação no país, um volume extraordinário. Parte significativa desse acervo corresponde a ações de cobrança. De acordo com números citados no Senado, em 2020 o Judiciário tinha mais de 75 milhões de processos em andamento, dos quais pelo menos 39 milhões eram demandas de natureza fiscal, cível ou cumprimento de sentença (isto é, execuções de diversos tipos). Em outras palavras, cerca de metade dos processos judiciais envolvem dívidas que o credor está tentando receber.
Mesmo fontes mais conservadoras estimam que em torno de 40% de todos os casos em curso referem-se a execuções de dívida. Não por acaso, o ministro Mauro Campbell Marques, corregedor nacional de justiça, destacou o enorme passivo de ações e a necessidade de soluções inovadoras. Campbell citou “o desafio para lidar com o acúmulo, traduzido em 80 milhões de ações em tramitação” no Judiciário, um cenário que impõe urgência na busca por formas de desafogar os tribunais.
O problema das execuções judiciais não é apenas de quantidade, mas também de resultado. Hoje, a maioria dos processos de execução termina sem satisfação do crédito. Muitas vezes o devedor não possui bens penhoráveis e, após anos de tramitação e diligências infrutíferas, o caso é arquivado. “Os juízes acabam despendendo boa parte do seu tempo com processos que, em sua maioria, não geram qualquer resultado útil para o cidadão”, observou o senador Marcos Rogério. Essa baixa efetividade gera frustração para credores e congestionamento para a Justiça, recursos públicos e tempo de magistrados são consumidos em cobranças que não se concluem com pagamento.
Segundo Soraya Thronicke, apenas 15 em cada 100 processos de execução obtêm êxito na recuperação do crédito, e a tramitação média ultrapassa 4 anos e 9 meses. O restante representa bilhões de reais em créditos não recuperados, o que acaba por onerar a economia e estimular a inadimplência. O projeto de execução extrajudicial nasce, portanto, do diagnóstico de que o modelo atual de cobrança judicial de dívidas está sobrecarregado e é ineficiente em grande medida.
A expectativa dos defensores da proposta é que transferir essas cobranças para os Cartórios de protesto tornaria o procedimento mais ágil, menos custoso e mais eficiente, permitindo que os juízes se concentrem em casos mais complexos ou que exijam função jurisdicional (conflitos, interpretação de lei, etc.). Na visão de Soraya, haveria “simplificação e desburocratização” das execuções civis, desonerando os cofres públicos em despesas judiciais e contribuindo para alavancar a economia.
Estudo de jurimetria citado no projeto estima potencial de economia de R$ 65 bilhões ao Estado com a redução do custo-processo nessas cobranças. Ao tirar milhares de ações de execução da fila dos fóruns, o Judiciário ganharia fôlego. Calcula-se que somente a desjudicialização das execuções fiscais (dívidas tributárias ativas) já poderia extinguir alguns milhões de processos nos tribunais.
Entretanto, nem todos os operadores do Direito estão convencidos de que a mera mudança de foro (do judicial para o extrajudicial) resolverá o problema de fundo. A juíza Marília Sampaio pondera que o maior obstáculo na cobrança de dívidas é a falta de bens ou recursos do devedor, algo que permaneceria mesmo com a execução extrajudicial. “Essa realidade não deve mudar, seja na execução judicial, seja na execução extrajudicial. Não há garantias de que essa realidade de morosidade do processo há de se alterar substancialmente com a alteração do procedimento, tirando da via judicial para a via extrajudicial”, argumentou Marília. Ou seja, se o devedor é insolvente ou desaparece, o Cartório terá as mesmas dificuldades que o juiz tinha para encontrar patrimônio a penhorar.
A magistrada também defendeu o papel atual do Judiciário em garantir o devido processo legal, com servidores imparciais e presença capilar em todas as comarcas do país. “Cada comarca hoje tem um fórum, um quadro de oficiais de justiça… altamente capilarizado…; [esse] quadro… não necessariamente está presente na estrutura cartorária que se pretende implantar”, observou a juíza, levantando dúvidas sobre a cobertura territorial inicial dos agentes de execução.
Os críticos do projeto, entre eles entidades de oficiais de justiça e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), temem ainda riscos de violação de garantias ou sobrecarga de custos aos credores. A OAB manifestou posição contrária ao PL no Senado, argumentando que a mudança poderia trazer insegurança jurídica e não reduzir a necessidade de atuação de advogados (já que o credor continuará precisando de advogado para acionar o Cartório). Já a Federação dos Oficiais de Justiça (Fesojus), representada por Eleandro Alves, sustenta que os próprios oficiais de justiça já são “agentes de execução” naturais do Judiciário e poderiam entregar os resultados pretendidos, caso fossem melhor aproveitados. “Os oficiais de justiça estão à disposição para trazer essa efetividade a que o projeto visa. Temos a capacidade técnica, jurídica e o conhecimento”, afirmou Eleandro.
Diante desses posicionamentos, o relatório do senador Marcos Rogério propôs uma implementação gradual da desjudicialização. A ideia do relator é que, nos primeiros anos, a execução extrajudicial seja facultativa, o credor escolhe se vai ao Cartório ou ao Judiciário, e somente se o modelo extrajudicial provar ser mais eficaz é que poderia se tornar obrigatório no futuro. “O ponto central, para mim, da inovação que trago no substitutivo é liberdade… propõe que seja inicialmente facultativo e, se exitoso, passa a ser obrigatório. … O risco aqui é dar certo. … Quem é que vai optar por um modelo ou por outro? É o credor”, explicou Marcos Rogério. Essa abordagem busca mitigar temores e testar na prática o novo sistema antes de uma adoção completa.
O Conselho Nacional de Justiça, por sua vez, acompanha de perto a tramitação e já discute, nos bastidores, eventuais medidas regulatórias caso a lei seja aprovada. O projeto prevê explicitamente um papel ativo do CNJ na implementação: caberia ao Conselho, em conjunto com os tribunais e a entidade nacional dos protestos, promover a capacitação dos novos agentes de execução e padronizar procedimentos e valores de emolumentos a serem cobrados. Ou seja, a própria Corregedoria Nacional de Justiça teria responsabilidade de regulamentar detalhes e treinar os tabeliães para essa função, o que indica um alinhamento institucional para tornar a mudança viável.
Os Cartórios de Protesto como solução
Os Tabelionatos de Protesto, presentes em todas as unidades da Federação, enxergam na execução extrajudicial de dívidas uma oportunidade de contribuir com sua já reconhecida expertise em cobrança de créditos. Hoje, a atribuição principal desses Cartórios é lavrar protestos: quando um título (boletos, duplicatas, cheques, notas promissórias, certidões de dívida ativa etc.) não é pago na data devida, o credor pode levar o documento ao Cartório, que intima o devedor. Se mesmo intimado o devedor realizar o pagamento, o tabelião registra o protesto, ato que constitui prova formal da inadimplência e leva o nome do devedor aos cadastros de crédito. Somente após quitar a dívida e as taxas cartorárias o devedor consegue retirar o protesto e limpar seu nome.
Trata-se de um mecanismo extrajudicial já consolidado para pressionar o inadimplente a pagar, sem envolver juiz.
Entretanto, quando nem mesmo o protesto surte efeito (isto é, o devedor permanece inadimplente), o caminho atual é o Judiciário. Com o PL 6.204/2019, pretende-se que essa próxima etapa, a execução forçada, com penhora e leilão de bens, também possa ser feita pelo Cartório, tornando a cobrança muito mais rápida. “O protesto é uma solução eficiente para recuperar créditos, já que seu impacto na restrição de crédito incentiva a regularização de dívidas. [Além disso], ele interrompe prazos prescricionais, permitindo que o credor tome medidas legais ou administrativas com mais tempo e segurança”, explica José Carlos Alves, presidente do Instituto de Estudos de Protesto de Títulos do Brasil em São Paulo (IEPTB-SP). Em outras palavras, os Cartórios de protesto já funcionam como um “primeiro filtro” de cobrança, recuperando muitas dívidas apenas com a negativação do nome, e, caso recebam poder de executar, conseguirão atuar também nas fases posteriores, evitando que o crédito “prescreva” ou que o credor tenha que arcar com longos processos judiciais.
Os Cartórios de protesto estão espalhados por todas as cidades importantes e operam em rede, interligados pela Central de Protesto (CENPROT) em nível nacional, o que facilita a troca de informações e o acesso a bases de dados de endereços, CPF/CNPJ e bens.
Além disso, diferentemente do Judiciário, que depende de orçamentos públicos, os Cartórios têm recursos próprios (via emolumentos) para investir em tecnologia e pessoal. Nos últimos anos, digitalizaram seus serviços. Hoje é possível fazer uma intimação por meio eletrônico ou consultar protestos pela internet gratuitamente. “Os Cartórios de Protesto possuem expertise na recuperação de todos os tipos de dívidas e estão preparados para atender a essa nova demanda, na forma de agentes de execução”, afirmou a tabeliã Bernadete Nunes Rêgo, vice-presidente do IEPTB no Rio Grande do Norte.
Outro ponto enfatizado é que a atuação extrajudicial não compromete a segurança jurídica, pois os Cartórios são extensões do serviço público, com profissionais concursados e fiscalizados. “A função do extrajudicial é realmente fazer essa seleção.
Só vai ao Judiciário, de fato, aquilo que depende da função jurisdicional, que não possa ser resolvido no extrajudicial. O extrajudicial integra a organização judiciária, é fiscalizado pelo Poder Judiciário, é regulamentado por lei”, destaca Rogério Portugal Bacellar, presidente da Associação dos Notários e Registradores do Brasil (ANOREG/BR).
Ou seja, ao delegar atos de execução aos tabeliães de protesto, não se está privatizando a Justiça, mas sim usando um braço do próprio Judiciário (os serviços notariais e de registro) para cumprir a tarefa, sob os mesmos princípios de legalidade e imparcialidade. Os tabeliães atuarão seguindo o Código de Processo Civil e as normas das corregedorias, tal como previsto no projeto de lei.
Todo ato de penhora ou arresto, por exemplo, será formalizado em autos e, se necessário, poderá ser supervisionado por um juiz (o agente de execução poderá consultar o juízo competente em caso de dúvidas ou para medidas coercitivas, conforme o PL). Assim, os direitos do devedor e do credor permanecem resguardados, apenas muda o “gestor” inicial do procedimento: sai o juiz, entra o tabelião.
Do ponto de vista econômico e do cidadão comum, a execução extrajudicial promete reduzir custos e acelerar soluções. Hoje, uma ação judicial de execução envolve custas processuais, honorários advocatícios e pode levar anos até o credor ver a cor do dinheiro (isso quando vê). Com a via extrajudicial, espera-se que os prazos caiam drasticamente, talvez em poucos meses seja possível concluir uma cobrança que no Judiciário levaria em torno de 5 anos. Os custos notariais ainda serão definidos pelo CNJ e pelos Tribunais (provavelmente serão proporcionais ao valor cobrado, como ocorre com outras despesas de Cartório), mas a tendência é que sejam menores que os gastos de um processo judicial prolongado.
De fato, estudos do Instituto de Protesto apontam que protestar dívidas tem efeito pedagógico: o devedor sério busca pagar logo para não ficar com o “nome sujo”. Expandindo esse mecanismo para incluir penhora extrajudicial, o credor terá meios de satisfação mais rápidos e o devedor enfrentará consequências patrimoniais imediatas se não pagar, o que tende a inibir a inadimplência estratégica (aquele devedor que pode pagar mas protela porque a Justiça é lenta).
Referências internacionais
Países europeus como Portugal, Espanha e Itália já adotam sistemas de agentes de execução privados ou semi-públicos, que desempenham funções análogas às propostas para os tabeliães de protesto no Brasil. Na França, por exemplo, os huissiers de justice (oficiais de justiça de status liberal) realizam penhoras e leilões sem a intervenção de um magistrado, recorrendo ao Judiciário apenas em casos de conflito. Portugal, inspiração direta do PL 6.204/19, conta com os solicitadores de execução, profissionais que conduzem os processos executivos conforme delegação legal. Nesses países, as execuções civis tendem a ser mais céleres justamente por estarem desconcentradas da estrutura tradicional dos tribunais.
O Brasil, ao seguir essa tendência, pode entrar em um novo patamar de eficiência na cobrança de créditos. “Essa medida tem o potencial de desafogar o Judiciário, reduzindo custos e tempos processuais, além de oferecer mais opções para a sociedade resolver conflitos de maneira extrajudicial”, afirma José Carlos Alves, do IEPTB-SP. Ele ressalta que a proposta de desjudicialização complementa o trabalho que os Cartórios já vêm fazendo: “ampliando suas competências para recuperação de créditos”, os tabeliães de protesto poderão contribuir ainda mais para a sustentabilidade econômica e social, ao agilizar a circulação de riquezas hoje travadas em disputas judiciais.
O PL 6.204/2019 precisa ser aprovado na CCJ do Senado, depois no plenário, seguir à Câmara dos Deputados e, se passar, ser sancionado pelo Presidente da República. Se bem-sucedida, a iniciativa poderá colocar o Brasil em sintonia com uma tendência global de desjudicialização/extrajudicialização, beneficiando diretamente o cidadão (que terá um meio mais rápido de ver sua dívida cobrada ou seu crédito pago), o mercado (com menos calote e mais acesso ao crédito) e o sistema de justiça (que poderá focar onde é realmente indispensável). Como afirmou Soraya Thronicke, “objetivando simplificar e desburocratizar a execução de títulos executivos civis e, por conseguinte, alavancar a economia do Brasil, propõe-se um sistema novo”, um sistema no qual Justiça e eficiência caminhem juntas, dentro e fora dos tribunais.
Fonte: Anoreg/BR