Notícias

10/09/2025

Artigo - Tokenização: A Hidra de Lerna dos registros públicos

Sérgio Jacomino

A tokenização é a Hidra de Lerna dos registros públicos. A cada golpe contra suas cabeças, duas novas despontam, multiplicando problemas e tornando o monstro terrivelmente ameaçador. Questões mal resolvidas se amplificam, os desafios se intensificam. Para muitos, as novas tecnologias são as faces de um monstro cuja cabeça imortal resiste a qualquer rochedo regulatório.

O mito de Héracles revela Iolaus, seu sobrinho, que cauteriza os pescoços cortados da serpe com um archote. Isso demonstra que o herói não vence sozinho a batalha, mas conta com a colaboração de aliados. Armado com a espada da razão e escorado na intuição - simbolizada pelo fogo que impede a duplicação da cabeça da hidra -, Héracles doma seus impulsos disruptivos.

As novas tecnologias são como os frutos da Matrix Generatrix, na nossa metáfora Echidna, que unida a Tifão gera monstros como a Hidra de Lerna.

Na IA - Inteligência Artificial, cada token processado gera ramificações em redes neurais, como novas cabeças que se multiplicam. Na blockchain, cada bloco - como um "ovo viperino no útero de silício", nas palavras do dr. Ermitânio Prado - dá à luz novos monstros desafiadores. A caverna de Echidna é o ecossistema tech, fértil em desafios, mas igualmente rico em oportunidades para a reinvenção. As resistências que se antepõem às investidas acabam por gerar forks e novos elos se formam, novas cabeças se alevantam.

Ao homem cabe lutar e vencer cada desafio, sabendo-se que, mesmo dominando uma nova tecnologia, outras emergirão neste caldo de cultura, em ritmo cada vez mais rápido, motivado pela "lei dos retornos acelerados" (Kurzweil).

Apresento aqui, caro leitor, uma despretensiosa incursão ensaística sobre os problemas que afligem a classe dos registradores. Como outrora, os grandes desafios foram vencidos pela inteligência e argúcia de nossos maiores. As novas tecnologias oferecem a oportunidade renovada de lutar o bom combate e de superar os novos obstáculos. Somente poderemos superar a IA com a IH - Inteligência Humana, que tem por aliada a intuição, a tocha luzidia do espírito.

Nada de novo no front

A lei 6.015/1973 é tributária de leis e regulamentos que foram criados no século XIX. O sistema registral foi pensado para regular fundamentalmente relações lineares e singulares - comprador/vendedor, credor/devedor etc. Não foi concebido para dar suporte a operações jurídicas complexas e que ocorrem em massa na instantaneidade das redes eletrônicas. Os ativos baseados em direitos imobiliários combinam-se e integram blocos que podem ser alienados, total ou parcialmente, onerados, dados em garantia, tudo na velocidade da luz. O acelerado processo econômico de intercâmbios e transações, realizados por meios eletrônicos, pressupõe a existência de mecanismos de registro adaptados para esta nova realidade. A nota característica dos tempos modernos é que os registros devem conformar-se à lógica dos meios digitais, sem o sacrifício de sua essência. Afinal, the medium is the message.

Os gaps e conflitos que pululam feito pulgas no picadeiro tecnológico não são somente jurídicos. Lafayette já indicava que a legislação hipotecária havia nascido e desenvolvido sob a ação de ideias econômicas, mais do que sob os "ditames da razão jurídica". A reforma decimonômica visou precipuamente desenvolver, fortificar e multiplicar o crédito territorial (Direito das Cousas, 2ª ed. Rio de Janeiro: Jacyntho Ribeiro dos Santos, s. d., p. 451). O regime hipotecário do século XIX acabou por sacrificar, em certa medida, o elemento jurídico em pontos da maior importância (Idem, ibidem, p. 408). Certamente, ele se referia ao complexo sistema de publicidade hipotecária, nascido antes mesmo da codificação civil, que ainda tardaria várias décadas.

Cédulas de crédito, securitização de ativos imobilliários, fundos de investimento, tokenização... Enfim, talvez estejamos diante de fenômenos disruptivos que, uma vez mais, hão de transformar o próprio sistema registral pátrio, convocando os juristas para uma competente "análise jurídica da economia", enfrentando os mitos da eficiência a todo custo, apregoados pelos chato-boys do mercado, parafraseando Oswald de Andrade.

NFT, cessão fiduciária, e os riscos sistêmicos

O mercado sempre precifica os riscos e busca soluções para enfrentar suas crises. O MERS - Mortgage Electronic Registration Systems sofreu com o colapso hipotecário do subprime (2007-2008), mas sobreviveu e se reestruturou, reforçou seus protocolos de compliance e passou a ter um uso mais restrito, é verdade, mas ainda se acha bem plantado no cenário norte-americano.

O risco de as atividades próprias de registradores serem absorvidas por outros agentes - ou pelo próprio mercado - é sempre presente e atual. O registro das alienações fiduciárias de veículos automotores, por exemplo, foi absorvido por um registro administrativo (Detran). O registro das garantias no RTD ostentava o caráter constitutivo, essencial para gerar plena eficácia da garantia real (Moreira Alves). Entretanto, nenhum rigor jurídico importou muito para deter a vaza reformista. O registro em RTD foi considerado uma "odiosa imposição", nas duras palavras do ministro Luiz Fux. Segundo ele, o registro afrontaria o princípio da razoabilidade, "posto impor desnecessário bis in idem, máxime à luz da interpretação autêntica levada a efeito pelo novel art. 1.361 do CC" (STJ REsp 686.932-PR, j. 1/4/2008, DJ 10/4/2008, rel. min. LUIZ FUX). Daí a consagrar-se no STF a constitucionalidade do dispositivo foi um pulo. Dar-se-ia, a partir de então, como constituída a propriedade fiduciária de veículos com o mero registro do contrato de garantia na repartição administrativa competente para o licenciamento do bem (STF RE 611.639- RJ, j. 21/10/2015, DJ 15/4/2016, Pleno, rel. min. MARCO AURÉLIO).

Aliás, o RENAVAM - Registro Nacional de Veículos Automotores é um registro público, estatal, obrigatório e vinculado ao poder de polícia administrativa (CTB - lei 9.503/ 1997). Nele se registra a propriedade do veículo, com sua especialidade e histórico (continuidade). Mas calha perguntar: e as garantias reais? Onde são registradas? No RENAGRAV (Registro Nacional de Gravames), como previsto na resolução 689, de 27/9/2017, baixada pelo CONTRAN. Entretanto, a resolução CONTRAN 1.016, de 11/12/2024 (que atualiza a res. 807/20) previu que os contratos de alienação fiduciária deveriam ser "obrigatoriamente registrados no órgão ou entidade executivo de trânsito do Estado ou do Distrito Federal por meio de empresa registradora de contrato especializada, credenciada" (art. 8º). As empresas registradoras recebem o credenciamento para realização de tarefas operacionais (transmissão de dados, monitoramento de contratos para empresas privadas sob controle público). Na prática o registro de gravames é feito por empresas privadas. Eis uma nova modalidade de privatização light...

É preciso destacar a diferença entre a alteração legislativa ocorrida no caso de alienações fiduciárias registradas no RTD e a que se refere ao registro imobiliário (competência circunscricional). Em relação aos veículos automotores, havia uma dispersão do locus registral. Sabemos que a transmissão de bens móveis se dá pela tradição (art. 1.226 do CC) e o instrumento de garantia de bens móveis deveria ser inscrito nos RTDs do domicílio das partes (art. 130 da LRP). A lei promoveu a concentração dessas competências no âmbito do Detran, à míngua de um sistema eficiente do próprio RTD à época (hoje seria possível no âmbito do ONRTDPJ, mas esta solução lamentavelmente tardou). Mesmo as chamadas entidades registradoras (BCB) funcionam em regime de interoperabilidade (circulares BCB 3.953, de 10/7/2019 e 3.968, de 31/10/2019).

O risco que o Registro de Imóveis brasileiro corre é justamente reduzir-se à tarefa de constituição do direito de propriedade, dando ocasião a uma espécie de "comoditização" de inscrições que servirá de base para a constituição, alhures, de garantias reais.

Há indícios de descolamento progressivo das garantias reais (e sua circulação por meio de cessões fiduciárias) trespassadas dos ofícios prediais para entidades registradoras. Eu havia provocado a reflexão dos registradores no artigo A inconstitucionalidade dos meteoros1, a propósito da resolução BACEN 4.088, de 24/5/2012, que dispôs acerca do "registro de informações referentes às garantias constituídas sobre veículos automotores e imóveis relativas a operações de crédito, bem como de informações referentes à propriedade de veículos automotores objeto de operações de arrendamento mercantil".

A tokenização pode vir a ser um registro que mantém a âncora na propriedade registrada no RI, enquanto navega como ativos infungíveis nativos em plataformas eletrônicas privadas, como veremos logo abaixo na experiência do Rio Grande.

Blockchain e Smart Contracts - desafios à segurança jurídica?

A BC - blockchain é uma ferramenta útil para conferir maior segurança ao sistema registral. Na especificação do SREI, lá pelos idos de 2011-2012 (LSITEC-CNJ), antevíamos o uso da BC para registro encadeado de transações eletrônicas no processo do SREI. O elegante modelo acha-se especificado na documentação técnica publicada.

No ano de 2016, em São Paulo, o IRIB realizou o encontro para debater especificamente o tema da blockchain como ferramenta do registro imobiliário, publicando, já no ano seguinte, a IPRA-CINDER International Review (jan./jun 2017)

Posteriormente, no IRIB, seria criado o portal de editais on line, onde as edições eram registradas em BC. Penso que foi a primeira iniciativa do gênero no âmbito das notas e registros públicos. É uma ferramenta com enorme potencial para agregar maior segurança às transações eletrônicas que se sucedem na cadeia registral do SREI.

Acha-se bem documentado que a BC pode ser uma ferramenta útil e segura para o Registro de Imóveis.

Já os smart contracts (contratos inteligentes) - modalidades de programas ou protocolos digitais autônomos que operam em uma BC -, ele permitem a execução automática, transparente e segura de contratos sem a necessidade de intermediários. Aqui reside o busílis. Nos modelos tradicionais, as transações imobiliárias eram instrumentalizadas pelos notários e registradas no Registro de Imóveis. O Registrador, profissional do direito, examinava o título, conferia sua congruência com a ordem legal (princípio da legalidade), confrontava o título com os antecedentes registrais (continuidade), para, ao final, determinar o registro, fruto de uma diligência de caráter jurídico.

Ao exercer esta atividade "de qualificação registral", o registrador funcionava como oráculo - ou gatekeeper - na ponte que liga o originador do instrumento (notário, em regra) ao Registro Imobiliário. Ocorre que, com a universalização dos extratos, ressuscitados com a reforma de 2022, tais artefatos desafiam, de fato, os registradores. Criados à imagem e semelhança dos formulários da lei modelo da UNCITRAL sobre garantias (Notice Registration), a possibilidade de decaimento - de um registro de caráter jurídico para mero cadastro administrativo - é um risco. O "oráculo", que defere e sanciona a passagem do ativo para os domínios onchain, pode ser uma IA, ou simplesmente o resultado de processos eletrônicos de automação com base em algoritmos especializados. Processos que podem ser totalmente despersonalizados. Preenchidos os campos dos formulários estereotipados, expedido o extrato pelas infovias, o seu processamento pode ser fácil e instantaneamente executado, dispensando qualquer modalidade de intervenção humana, exame de legalidade e validade da titulação. O registro de imóveis poderá fazer-se "por indicação", como ocorre com o protesto de alguns títulos.

Nesse cenário, as novas tecnologias realmente desafiam os registros públicos. Entretanto, elas podem, igualmente, representar um obstáculo a ser superado pelos próprios registradores, como tem sido, por exemplo, com os notários, que admiravelmente se reinventaram para sobreviver no ecossistema digital.

Não se pode cair no pessimismo reacionário, paralisando-se pela neofobia, nem excitar-se pelos fetiches tecnológicos. É necessário inteligência e estratégia para enfrentar as ondas disruptivas da modernidade.

O ONR e a digitalização dos cartórios

O sistema registral brasileiro compõe-se de uma malha que cobre mais de dez mil registradores espalhados por todo o Brasil. São cartórios com níveis diferenciados de digitalização. A criação do ONR foi pensada visando enfrentar e resolver as assimetrias verificadas nas inspeções que realizamos em vários estados da federação integrando as comissões do CNJ. Como modernizar serventias que não contam com recursos mínimos para manter um nível modesto de informatização? Há cartórios que realizam os registros em livros manuscritos, ou serventias que padecem pela falta de energia elétrica durante o dia. O ONR foi concebido para ser a solução, oferecendo a infraestrutura tecnológica que poderá ser compartilhada pelos registradores brasileiros, de norte a sul, independentemente de sua renda e porte.

A digitalização da sociedade - fenômeno que se verifica em escala mundial - não deixará de impactar os serviços registrais brasileiros. A Decisão (UE) 2022/2481 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14/12/2022, estabelece o Programa de Política da Década Digital 2030 que prevê a digitalização dos serviços públicos, de modo que 100% dos serviços essenciais deverão ser prestados eletronicamente, com acesso e interação pelas plataformas digitais, com o uso de meios de sistemas de identificação pessoal eletrônica (eID) seguros e reconhecidos em toda a União Europeia.

É preciso avançar. Especificamente acerca da tokenização, não basta que se crie a infraestrutura tecnológica - computadores, bancos de dados, blockchain, técnicos, analistas etc. É necessário que se faça uma análise jurídica do modelo. Como conciliar segurança jurídica com rapidez e eficiência? Comecemos pelo começo? qual a natureza jurídica dos tokens? São títulos representativos de ativos infungíveis. Como serão registrados? Os registros serão regulados e fiscalizados pelo Poder Judiciário ou pela CVM, Banco Central ou Conselho Monetário Nacional? São criptoativos que se enquadram na categoria de bens e valores mobiliários? São dispostos e transacionados nos mercados de capitais? Necessita-se de um marco legal?

O fenômeno de conversão de direitos de garantia em títulos representativos (como as cédulas de crédito) é bastante percebido por todos nós. Os créditos podem ser cedidos e carregam a propriedade fiduciária. É conhecida a figura de cessão de crédito garantido por direito real representado por CCI escritural; ela "está dispensada de averbação no Registro de Imóveis" (§ 2º do art. 22 da lei 10.931/04). Não há propriamente "qualificação" jurídica de impulsos eletrônicos que atualizam os registros de garantias nas entidades registradoras e de custódia.

As CCI's, emitidas e averbadas no registro de imóveis (§ 5º do art. 18 da lei 10.931/04), a partir desse momento, libertam-se do registro de imóveis e vagam pelas plataformas eletrônicas exógenas que gravitam o sistema registral, retornando ao final, com a "certificação" privada da titularidade atualizada do crédito e da propriedade fiduciária.

Por definição - e segurança de todo o sistema - a emissão de um token deve ser ancorada no Registro de Imóveis, instituição encarregada da criação, conservação, alteração, oneração, transmissão e extinção dos direitos de propriedade. Sem esta ancoragem, os criptoativos descolam-se irremediavelmente de seu lastro material e sujeitam-se aos azares do mercado - ou decantam-se em entidades registradoras.

Sirva-nos de exemplo o fenômeno de expansão da securitização. Ela representa um sinal de alerta para o Registro de Imóveis. As iniciativas de acomodação imperfeita da figura do trust no sistema do direito civil brasileiro buscam a desintermediação financeira com a transferência de ativos (créditos ou recebíveis) de um originador para um VPE - veículo de propósito exclusivo, que emite títulos lastreados nesses ativos que são postos no mercado. Trata-se de um mecanismo para captar recursos de forma eficiente, dispersar riscos e mobilizar riquezas, renovando o Direito ao adaptar negócios jurídicos consolidados (Uinie Caminha). Cessão fiduciária de crédito, lastreada em direitos imobiliários, circulam e são registrados em entidades para-registrais. A previsão legal da averbação do Termo de Securitização de Créditos (parágrafo único do art. 10 da lei 9.514/1997) foi simplesmente extirpada do ordenamento jurídico pela lei 14.430/22.

O sistema registral deve reinventar-se

Semanticamente, um token significa simplesmente sinal, símbolo, prova. A matrícula pode ser considerada um token, no sentido de que a informatização das plataformas pode fazer nascer a representação digital da própria matrícula - um registro estruturado que consolida e atualiza a situação jurídica do bem em tempo real (Unger/Jacomino). Poder-se-ia convertê-la num NFT registral - Non-fungible tokens, identificado de forma única e publicizado por meio de blockchain consorciada ou sindicalizada? Nesse modelo, não são os registros individualmente considerados que se convertem em NFT, mas a própria matrícula, em seu estado depurado e atualizado, em tempo real, representação digital fidedigna da realidade jurídica do imóvel. Nesse caso, pergunta-se, a conversão da propriedade em um token promove a mutação da natureza da propriedade? A sorte do token, no dinamismo dos intercâmbios eletrônicos, divorcia-se do lastro estático dos direitos inscritos? Esta cisão precisa ser bem pensada estruturada, sob pena de criar um "esquizoregistro".

Nesse cenário, a compra e venda de um imóvel "tokenizado" representa uma ruptura profunda no sistema de titulação afeiçoado ao sistema do direito civil. Sua adoção poderá representar uma mudança disruptiva, e sabemos que uma disrupção pode significar simplesmente destruição.

A tokenização imobiliária é possível no Registro de Imóveis?

Respondo afirmativamente. É preciso inteligência e perfeita compreensão dos fundamentos da publicidade jurídica, para que não nos percamos pela tentação da "administrativização" do chamado "registro de direitos" (ok, o sistema brasileiro é inscritivo de títulos), nem que as atividades nucleares do registro - adjudicação e atribuição de direitos reais - possam ser absorvidas por empresas ou pela própria administração.

Modelos teóricos e implementações tecnológicas já existem e devem ser conhecidas pelos registradores. Desde as Colored Coins, que coloriam (marcavam) moedas para representar ativos únicos (propriedades, ações), até a sua popularização com o Ethereum, que introduziu o padrão ERC-7213, permitindo tokens únicos e não intercambiáveis, muitas discussões ocorreram. Desde então, não faltam projetos que ambicionam o mercado nascente, transformando os bens e seus direitos em ativos infungíveis negociados em plataformas eletrônicas.

Quando achávamo-nos no Conselho Consultivo do Agente Regulador do ONR, propusemos um modelo de registro de emissão e averbação de cessões sucessivas até o cancelamento da garantia em plataforma compartilhada do ONR, tudo de forma eletrônica. O modelo previa o controle das mutações realizado por cada unidade de registro em operação direta na plataforma compartilhada do SREI, o que diferia dos modelos de "centrais de gravames" que foram tentadas, mas debalde. O projeto ficou nas discussões preliminares, mas podem ser retomadas.

Há um sem-número de atividades que podem ser exploradas, tendo por base uma plataforma rápida, eficiente e segura, a cargo do ONR. No ambiente compartilhado, podem ser lançadas âncoras para lastrear várias operações blockchain-backed. Preservação de bens históricos, com a transferência tokenizada de potencial construtivo, tokenização de precatórios, captação de recursos no mercado para financiamento de aquisição de bens imóveis, controle de locações temporárias (Airbnb), uso de contratos inteligentes para automatizar aluguéis, incluindo pagamentos recorrentes, depósito de garantias e resolução de disputas etc.

As inúmeras possibilidades que se abrem com a difusão das plataformas digitais, que propiciam negócios inovadores, requerem um suporte registral seguro e eficiente.

 

Com a miríade de oportunidades, vêm, igualmente, os riscos e eles são conhecidos na literatura especializada. É preciso conhecê-los, para não incorrer nos mesmos erros.

CGJRS, COFECI e CGJSC - ventanias e vendavais - exemplos práticos

  1. a) Rio Grande na vanguarda

Iniciativas como a do Rio Grande do Sul (provimento CGJRS 38/21) mostraram-se notoriamente defectivas. Registra-se a permuta de determinado bem imóvel por um token não fungível (NFT). O imóvel passa a integrar o patrimônio da denominada tokenizadora, mas sem qualquer mecanismo de afetação ou segregação patrimonial. O titular do NFT pode aliená-lo, é certo, mas não haverá atualização da situação jurídica no Registro de Imóveis, de modo que o token "desgarra-se" do lastro (matrícula) e vaga em repositórios privados sem controle registral ou supervisão de autoridades do mercado. A propriedade segue a sorte da tokenizadora, sem afetação ou blindagem satisfatórias, sujeitando-se às vicissitudes  e intercorrências que podem afetar os direitos inscritos.

Os próprios registradores, em nota conjunta de diretoria 6/21 (Fórum de Presidentes das Entidades Notariais e Registrais do Estado do RS), apressaram-se em esclarecer que a permuta "não representa direitos sobre o imóvel permutado, seja no momento da permuta ou após, como conclusão do negócio jurídico representado no ato."

Caberia então indagar: qual o sentido de se qualificar esta operação como de "tokenização"?

  1. b) COFECI - Resolução COFECI 1.551/25

O COFECI baixou a resolução COFECI 1.551/25 (DOU 15/8/25) instituindo o Sistema de Transações Imobiliárias Digitais. Essa norma regulamenta a tokenização imobiliária no Brasil, criando um marco para a emissão, negociação e custódia de TID - Tokens Imobiliários Digitais, que representam DIT - Direitos Imobiliários Tokenizados vinculados a imóveis. O TID funciona como representação digital única (NFT focado em direitos imobiliários) em blockchains ou tecnologias de registro distribuído (DLT), permitindo transações como transferência, oneração ou fracionamento de direitos sobre imóveis.

Chega a ser admirável que o COFECI aventure-se por estas plagas. A lei 6.530/1978 diz que a ele compete disciplinar e fiscalizar a profissão de Corretor de Imóveis em todo o território nacional (art. 5º). Por outro lado, a atividade própria dos corretores (e de seus órgãos) cinge-se a "intermediação na compra, venda, permuta e locação de imóveis, podendo, ainda, opinar quanto à comercialização imobiliária" (art. 3º). O COFECI evidentemente não tem competência constitucional ou legal para instituir subsistemas de registro imobiliário, invadindo a competência constitucional e legal dos Registros Públicos (art. 236 cc. com inc. I do art. 22 da CF/1988 e lei 8.935/1994). Tampouco pode autoproclamar-se dotado de poderes para criar e gerir tal sistema - pelas repercussões gravosas pela dissociação dos registros legais e a tokenização. Nem pode atrair o poder normativo para conferir validade e eficácia jurídica aos atos e negócios jurídicos da tokenização. Evidentemente, a função normativa do COFECI não pode ultrapassar os limites da realização dos objetivos institucionais da profissão regulamentada (inc. III do art. 10 do decreto 81.871/1978).

O problema se nota nitidamente quando se verifica que o sistema proposto extrapola os limites conceituais da própria intermediação imobiliária. A lei 6.530/1978 confere ao COFECI competência para regular a intermediação, atividade que pressupõe uma relação triangular entre adquirente, transmitente e corretor, sem que este último jamais "detenha" a propriedade do bem intermediado. Contudo, a resolução institui figuras como o ACGI - Agente de Custódia e Garantia Imobiliária, que exercerá suas funções "mediante a detenção da titularidade registral ou de garantia real sobre imóvel" (art. 24, § 1º), autorizando as plataformas a atuarem como contrapartes diretas nas transações (art. 22). Tais atividades não são típicas figuras de intermediação no sentido técnico-jurídico, mas operações financeiras e fiduciárias que demandam titularidade dominial ou real, extrapolando, manifestamente, a competência regulatória originária do Sistema COFECI-CRECI, adentrando a seara própria de órgãos reguladores.

Para os propósitos destas pequenas digressões, e em linhas muito gerais, os principais órgãos do Sistema COFECI estruturam-se assim:

SGR - Sistema de Governança e Registro. Hub central e repositório oficial do ecossistema (art. 110), encarregado de armazenar e publicizar as transações realizadas e os gravames já constituídos nas PITDs, garantindo interoperabilidade entre subsistemas, com geração de hash e timestamp oficiais, e sempre sem prejuízo de outros registros legalmente exigidos.

PITDs - Plataformas Imobiliárias para Transações Digitais. São responsáveis pela formalização das transações digitais (art. 75) e pelo registro/controle de gravames (arts. 80-84), com comunicação obrigatória ao SGR.

ACGIs - Agentes de Custódia e Garantia Imobiliária. Estruturas que podem deter titularidade registral ou garantia real (§ 1º do art. 24; art. 55), a fim de assegurar a correspondência e exigibilidade dos direitos tokenizados.

Acerca das ACGIs, desponta uma contradição funcional insuperável. A resolução estabelece que a função essencial do ACGI será exercida mediante a "detenção da titularidade registral ou de garantia real" sobre imóvel (§ 1º do art. 24). A fórmula é tecnicamente infeliz. No direito civil, detenção (art. 1.198 CC) é a situação de quem conserva a coisa em nome de outrem, sem animus domini; já a titularidade registral corresponde à propriedade tabular (art. 1.245 CC). Falar em "detenção da titularidade registral" soa, na melhor das hipóteses, contraditório. O dispositivo parece abranger duas hipóteses: o ACGI como proprietário inscrito no RI ou como titular de garantia real (hipoteca, AF, anticrese etc.). Em qualquer caso, o investidor-tokenista não figura na matrícula, reduzido a titular de um direito derivado. A titularidade, na hipótese, é de um intermediário. Como alguém "detém" um direito de propriedade ou de garantia real? Como a figura da detenção de um direito real de garantia pode figurar no ecossistema da corretagem?

O descolamento entre titularidade econômica e titularidade tabular gera a aparência enganosa de que o token equivaleria à propriedade, quando apenas o registro na matrícula é constitutivo e conservativo do direito real.

De outro lado, os resultados esperados das operações são:

1) DITs - Direitos Imobiliários Tokenizados. Conjunto de direitos incidentes sobre bem imóvel determinado, de natureza real ou obrigacional, passíveis de representação digital por TIDs e de transação em PITD credenciada

2) TIDs - Token Imobiliário Digital: Representação digital de DITs - Direitos Imobiliários Tokenizados, emitida e registrada em blockchain ou tecnologia de registro distribuído (DLT) compatível, vinculada a imóvel determinado e, sendo o caso, a um ACGI - Agente de Custódia e Garantia Imobiliária;

Um aspecto particularmente sensível da resolução é a previsão de auto custódia de TIDs pelo próprio titular, mediante termo de ciência dos riscos (art. 44). Essa figura rompe a trilha probatória entre chave privada do bloco e matrícula, enfraquecendo o vínculo que dá segurança jurídica à tokenização.

Além disso, a resolução tem vigência prevista para a primeira metade de outubro de 2025, 60 dias após sua publicação no DOU. Esse intervalo será crucial para que o debate institucional - sobretudo com CNJ, IRIB, ONR, Bacen e CVM - avalie os limites da competência normativa do COFECI e defina como o novo ecossistema se articulará com o Registro de Imóveis.

À parte o exposto, o aspecto relevante é a maneira como ocorre a amarração dos NFT's onchain com os direitos reais legalmente constituídos offchain. Os efeitos jurídicos colimados na plataforma COFECI têm "natureza mediata ou indireta sobre o ativo imobiliário subjacente ou sobre os direitos reais a ele inerentes", de "conformidade com a legislação de registros públicos e demais normas aplicáveis" (art. 54). Isto significa que a plataforma depende de protocolos de interoperabilidade com o sistema registral, de modo a permitir o contínuo monitoramento do sistema (oversight), pois a higidez do token acha-se na dependência da validade e eficácia do direito representado.

Como já dissemos, a plataforma criada pelo COFECI não representa uma extraordinária novidade, pois isto já ocorre com a plataformização de títulos emitidos no processo de securitização e emissão das cédulas de crédito, registrados em sistemas de custódia e registro criados e fiscalizados pelas autoridades do BCB. O calcanhar de Aquiles é a coordenação entre o token e os direitos legalmente constituídos. Amiúde encontramos a expressão "ativo imobiliário subjacente", a referir-se ao lastro registral. O bem imóvel que fundamenta a operação de tokenização deve ter suas informações apresentadas de forma organizada, incluindo dados completos sobre suas características físicas (especialidade objetiva) e outros elementos, além do número da matrícula no Registro de Imóveis. Deve atualizar a situação jurídica, em tempo real, revelando a ocorrência de eventuais ônus, encargos, restrições que gravem o bem imóvel, elementos que podem afetar diretamente os direitos tokenizados e inocular o germe da insegurança jurídica no sistema.

A duplicidade de sistemas criada pela resolução produz um efeito que só pode ser descrito como um registro esquizóide: de um lado, a matrícula, eixo da fé pública imobiliária (CF, art. 236; CC, art. 1.245); de outro, o SGR, que funciona mais como peça de marketing do que como verdadeiro registro. É nesse terreno que vicejam os slogans sedutores, como o de que "o token é o imóvel", fórmula enganadora que mascara a realidadejurídica. O risco não é apenas conceitual: ao propagar a ilusão de equivalência entre matrícula e token, o sistema compromete o capital simbólico da fé pública registral, sem oferecer qualquer acréscimo efetivo à segurança jurídica do mercado imobiliário.

Nada impede que o COFECI discipline a circulação de direitos de caráter obrigacional relativos a bens imóveis, cuja existência independe do registro. O problema é bem outro: a Resolução, ao estruturar um sistema de custódia e publicidade, pode induzir à equipolência entre o token e a propriedade registral, como se fossem equivalentes. Esse slogan pode ser sedutor, mas enganador. Sem o registro na matrícula, nenhum direito real nasce ou se transmite (art. 1.245 do CC). O risco é de caráter sociológico e mercadológico: criar no imaginário coletivo a ideia de que a titularidade digital bastaria, quando apenas o Registro de Imóveis pode constituir os direitos e assegurar sua plena eficácia erga omnes.

O Sistema de Governança e Registro deve garantir que as informações fornecidas sejam sempre uniformes e confiáveis, pois a estrutura jurídica de tokenização deverá "assegurar, por mecanismos juridicamente idôneos, a correspondência, integridade e exigibilidade dos direitos representados pelo TID em relação ao ativo imobiliário subjacente" (art. 55). Quais serão estes mecanismos "idôneos" e "confiáveis" que garantirão a correspondência, integridade e exigibilidade dos direitos representados no token em relação aos ativos registrados?

Em suma, o sistema não trespassa e nem suprime o sistema registral, nem busca a simples concorrência, mas cria um regime de gestão de ativos que se assentam sobre direitos legalmente constituídos, sem um claro liame que dê substância ao sistema, como um viaduto no ar, sem sustentação.

A ambição do COFECI foi candidamente reconhecida por seu presidente: "O SGR - Sistema Eletrônico de Governança e Registro de Contratos foi idealizado a fim de tornar digitais as vistorias de imóveis e as ações fiscais. Entretanto, em face da novíssima lei 14.382/22, que cria o SERPE [hilária a confusão] - Sistema Eletrônico Unificado de Registros Públicos, considerando a condição de Autarquia Federal e a fé pública, conferidas por lei ao Sistema Cofeci-Creci, decidimos elevar o SGR à condição de Sistema Registrador de contratos e documentos em geral, oferecido a baixíssimo custo a todos os corretores e imobiliárias do Brasil". Ou seja: o SERPE [sic] é um órgão centralizado, "uno e funcional", barato e acessível.4

Este fenômeno não é uma novidade. Iniciativas como o COFECI despontam no cenário porque oportunizam a realização de transações que os meios tradicionais do registro até agora não permitiram. É óbvio que melhor para toda a sociedade seria que esta complexa estrutura estivesse a cargo dos próprios registradores imobiliários, por meio do seu ONR. Os registradores podem (e devem) criar plataformas inteligentes para assimilar os impulsos da sociedade digitalizada e dar-lhes solução satisfatória.

  1. c) CGJSC - cautela e canja de galinha

Andou muito bem a CGJSC ao proibir operações que tais envolvendo os cartórios de registro de imóveis, muito embora a resolução 1.551/25 prescinda da inscrição da ancoragem por meio de permuta, como no Rio Grande do Sul.

A pedido dos registradores do Estado, a Corregedoria estadual, por meio do provimento CGJSC 43/25 (circular CGJ 410/25), vedou expressamente praticar atos (averbação ou registro) que vinculem a matrícula imobiliária a tokens digitais, representações em blockchain, ou qualquer outro instrumento extrarregistral, com ou sem pretensão de representar a titularidade dominial.

A decisão fundamentou-se na necessidade de preservação da segurança jurídica registral, da fé pública e do sistema único e oficial de publicidade imobiliária. Os problemas antevistos de fato representam riscos à segurança jurídica, ruptura da cadeia dominial, evasão fiscal, lavagem de dinheiro, multiplicidade de titularidades e erosão da função pública notarial e registral.

Década da plataformização do Registro de Imóveis

Desde o ano de 2012, vimos nos dedicando à reforma do sistema registral, buscando dotá-lo de meios para acolher e dar respostas efetivas a demandas da sociedade em passo de progressiva digitalização. Os novos meios digitais descerram um amplo espaço para realização de negócios jurídicos que eram impensáveis nas plataformas e media tradicionais.

O sistema propugnado pelo COFECI é ambicioso e se aproveita de uma sentida lacuna nos sistemas de publicidade registral. O modelo é elegante, porém ainda frágil. Fornido com os melhores recursos tecnológicos, como time stamping e IA, falta-lhe, contudo, base legal e a confiança do mercado. Uma imagem impressiva do projeto seria a conhecida passagem de Daniel: a cabeça é de ouro, o peito e os braços de prata, o ventre e as coxas de bronze, as pernas de ferro, mas os pés são de barro.

Uma década é muito tempo na perspectiva de uma época de transformações aceleradas. O tempo e o espaço no direito é um tema inquietante e que deveria entrar nas especulações dos juristas que lidam com os efeitos de certos atos e fatos jurídicos que projetam seus efeitos no tempo. As distâncias entre as freguesias e as comarcas do Império, vencidas no lombo de mulas, acarretava a dilação do tempo de registro das hipotecas (a figura da reserva de prioridade foi criada por essa razão). Hoje as transações eletrônicas são instantâneas e não conhecem os acidentes do caminho.

Pequena conclusão

As cabeças da Hidra de Lerna são expressões dos múltiplos vícios humanos - que, no nosso caso, representam os desafios impostos pela ambição tecnológica. Elas nos desafiam ao justo combate e à ação de superação pela atividade de regeneração.

Aproveito o mote mitológico para finalizar com os desafios postos aos registradores. A Matrix Generatrix (Echidna) gera monstros como Cérbero, Quimera e a nossa Hidra de Lerna, entre outros. São imagens que representam os desafios cruciais da modernidade. A barreira legal-constitucional é frágil para lidar com a Matrix e com as adversidades e circunstâncias fortuitas da vida institucional. Um positivismo de resistência já não basta. Como na boutade deliciosa do Dr. Ermitânio Prado, não é possível proclamar, de modo pomposo e grandiloquente, a inconstitucionalidade de meteoros. É necessária ação transformadora e criativa. E o Registro de Imóveis tem virtude e história para vencer mais este desafio.

Fonte: Migalhas


•  Veja outras notícias