Notícias

28/10/2025

Artigo – Georreferenciamento não é certificação: o que o Decreto 12.689 prorrogou – por Moema Locatelli Belluzzo

A publicação do Decreto nº 12.689, de 21 de outubro de 2025, que alterou o artigo 10 do Decreto nº 4.449/2002, repercutiu intensamente no meio jurídico e registral. Ao fixar 21 de outubro de 2029 como marco para a exigência de “identificação da área do imóvel rural, na forma do artigo 9º” daquele regulamento, parte da comunidade interpretou que o georreferenciamento teria sido postergado.

O presente artigo demonstra que não houve dispensa do georreferenciamento, mas sim o adiamento da obrigatoriedade da certificação administrativa do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). É fundamental distinguir o ato técnico, que consiste na elaboração do memorial descritivo georreferenciado, do ato administrativo, que é a certificação desse trabalho pelo órgão federal, por meio do Sigef. Essa diferenciação é decisiva para compreender o alcance real do decreto e preservar a coerência entre a lei e seu regulamento. Busca-se, ainda, examinar a hierarquia entre lei e decreto e definir o papel dos registradores de imóveis diante dessa nova configuração normativa.

A Lei nº 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), em seus artigos 176 e 225, estabelece o regime jurídico da identificação imobiliária. Já o artigo 225 da mesma lei consagra regra geral e atemporal, ao determinar que os tabeliães, escrivães e juízes façam constar, nas escrituras e nos autos judiciais, a descrição precisa dos imóveis, com indicação de suas características, confrontações e localização.

Esse dispositivo possui importância estruturante no sistema registral brasileiro, pois consagra, em linguagem própria de sua época, o dever de precisão na descrição dos imóveis. Ao determinar que “tabeliães, escrivães e juízes farão constar, nas escrituras e nos autos judiciais, a descrição dos imóveis, com suas características, confrontações e localização”, o legislador empregou terminologia condizente com a realidade institucional de então, em que a atividade extrajudicial ainda se confundia com a judicial, e o escrivão figurava como agente encarregado da lavratura de atos públicos.

Sob a ótica contemporânea, o artigo 225 deve ser interpretado de forma evolutiva, abrangendo não apenas os tabeliães e magistrados, mas também os oficiais de registro de imóveis e todos os agentes delegados responsáveis pela formação e qualificação dos títulos que ingressam no fólio real. A referência a “autos judiciais” igualmente deve ser lida em sentido amplo, alcançando os atos e procedimentos extrajudiciais que envolvem direitos reais, uma vez que o núcleo da norma não reside no tipo de procedimento, mas na exigência de identificação precisa do bem.

Ao exigir a menção das características, confrontações, localização e até mesmo a posição do imóvel na quadra e a distância métrica de suas divisas, o artigo 225 expressa de forma clara o princípio da especialidade objetiva, que assegura a correspondência entre o registro e a realidade territorial. Esse comando não se limita à atuação dos notários ou juízes, mas constitui obrigação intrínseca, enraizada na essência da função do registrador de imóveis, cuja atuação pública exige a preservação da unicidade matricial e a prevenção de sobreposições. Embora redigido há mais de cinquenta anos, o dispositivo mantém plena atualidade e reforça que a identificação espacial do imóvel é requisito de validade e segurança jurídica do registro. Assim, o artigo 225 revela a gênese do princípio da especialidade, que se manifesta tanto no título quanto no registro, assegurando que o objeto jurídico esteja identificado com precisão desde a origem do ato até sua inscrição.

O princípio da especialidade, pilar do sistema registral brasileiro, desdobra-se em duas vertentes complementares: a especialidade subjetiva, que incide sobre a correta qualificação das pessoas, e a especialidade objetiva, que recai sobre o objeto, ou seja, o próprio imóvel. Esta última exige que cada bem possua descrição completa e suficiente para distingui-lo de todos os demais, abarcando elementos quantitativos (medidas lineares e área), qualitativos (características físicas, forma, confrontações e denominação) e locacionais (que permitam a perfeita localização no espaço geográfico). Essa tríplice dimensão assegura que o imóvel seja identificável e encontrável no mundo real, permitindo que o registro cumpra sua função de garantir segurança jurídica, prevenir sobreposições e evitar litígios possessórios e dominiais.

A identificação registral, portanto, não é mero detalhe formal, mas o elemento que garante que a propriedade seja juridicamente reconhecida e espacialmente localizável, exigência que se mantém independentemente de prazos administrativos ou da certificação do georreferenciamento, como condição inafastável da segurança jurídica registral. Ademais, a obrigação de individualizar o imóvel decorre, ainda, do artigo 176, § 1º, II, 3, a, da Lei nº 6.015/1973, que estabelece como requisito essencial da matrícula a identificação do imóvel, exigindo, quando se tratar de bem rural, a indicação do código do imóvel, dos dados constantes do Cadastro de Imóvel Rural (CCIR), da denominação, das características, confrontações, localização e área. Trata-se de comando legal que concretiza o princípio da especialidade objetiva, impondo que o imóvel seja descrito de modo completo e preciso, de forma a permitir sua exata localização no território nacional.

A determinação legal de incluir na matrícula esses elementos quantitativos, qualitativos e posicionais traduz a exigência de que cada imóvel seja único e perfeitamente distinguível dos demais, assegurando a coerência territorial do fólio real e prevenindo sobreposições, incertezas e litígios. Sem a correta individualização, o registro perde sua função de conferir certeza e eficácia erga omnes. Essa função de localização e individualização, de inserir o imóvel no território nacional, confere aos Cartórios de Registro de Imóveis uma relevância pública que ultrapassa a esfera patrimonial: são instrumentos de ordenamento jurídico e territorial do país.

A interpretação sistemática dos §§ 3º e 4º do artigo 176 da Lei nº 6.015/1973 revela que o prazo referido no § 4º se refere à exigibilidade da certificação administrativa do georreferenciamento pelo Incra, responsável por verificar se há sobreposição com outros imóveis certificados. O georreferenciamento é a forma contemporânea de se identificar o imóvel; o que o Poder Executivo pode escalonar é o momento em que essa identificação deverá ser comprovada mediante a certificação.

O Decreto nº 4.449/2002, editado para regulamentar o artigo 176, §§ 3º e 4º, da LRP, diferencia dois planos distintos: o técnico e o administrativo. O artigo 9º define o conteúdo técnico do georreferenciamento, estabelecendo que a identificação do imóvel rural consiste na descrição de limites, confrontações e coordenadas georreferenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro, com memorial assinado por profissional habilitado e Anotação de Responsabilidade Técnica. Já o § 1º do mesmo artigo acrescenta que essa identificação será comprovada por certificação do Incra, que verificará eventual sobreposição com outros imóveis certificados. Percebe-se, portanto, que o georreferenciamento é o ato técnico, produzido no âmbito privado, enquanto a certificação é o ato administrativo federal, de natureza homologatória. É plenamente possível existir georreferenciamento sem certificação, mas não o contrário.

O Decreto nº 12.689/2025 alterou o artigo 10 do Decreto nº 4.449/2002, que passou a ter a seguinte redação: “Art. 10. A identificação da área do imóvel rural, a que se refere o artigo 176, §§ 3º e 4º, da Lei nº 6.015/1973, será exigida nas hipóteses de desmembramento, parcelamento, remembramento e em qualquer situação de transferência de imóvel rural, na forma estabelecida no artigo 9º, a partir de 21 de outubro de 2029”. Em termos práticos, o decreto não elimina o dever de identificar o imóvel, apenas prorroga o marco temporal para que essa identificação seja comprovada por certificação do Incra/Sigef. O texto é claro ao remeter à “forma do art. 9º”, o que significa que a exigência de certificação foi adiada; entretanto, a obrigação de individualizar o imóvel subsiste, pois decorre de lei e não de decreto.

Certificação pode ser prorrogada; segurança jurídica, não

O georreferenciamento, portanto, não é uma exigência criada pelo decreto, tampouco um requisito cuja obrigatoriedade dependa da certificação administrativa do Incra. Ele representa a forma técnica atual de proceder à descrição perimetral do imóvel, cumprindo o comando legal contido na Lei nº 6.015/1973, que impõe a indicação das características, confrontações, área e localização exata do bem. Trata-se de uma evolução tecnológica da forma de mensurar e identificar imóveis, que substituiu métodos antigos, como a medição por cordas, braças ou teodolito, por instrumentos geodésicos modernos baseados em GPS de precisão.

Assim, o georreferenciamento sequer depende de norma que o imponha expressamente, porque é a atualização natural da técnica de medição necessária para atender à exigência legal de individualização. Dispensá-lo equivaleria a admitir o retorno de descrições imprecisas, típicas de registros antigos, em que os limites se definiam “do pé da serra até a grota”, o que afrontaria frontalmente os artigos 176 e 225 da Lei de Registros Públicos e o próprio princípio da especialidade objetiva. A certificação geodésica, por sua vez, possui natureza administrativa-cadastral, sem interferir na atividade registral, que é autônoma e tem por finalidade assegurar a existência jurídica e a segurança espacial do imóvel.

Além disso, a interpretação que conduz à dispensa integral do georreferenciamento seria materialmente inconstitucional, pois implicaria permitir registros de imóveis sem identificação suficiente, afrontando os artigos 176 e 225 da LRP e o princípio constitucional da legalidade, previsto no artigo 5º, II, da Constituição. A hierarquia das normas impede que um decreto revogue, restrinja ou amplie o conteúdo de uma lei.

O artigo 84, IV, da Constituição limita-se a autorizar o chefe do Poder Executivo a expedir decretos para fiel execução da lei. Portanto, o Decreto nº 12.689/2025 não pode afastar a obrigação legal de individualização do imóvel. Pode, sim, modular os efeitos administrativos da certificação, já que esta decorre de competência delegada ao Incra, um ato de controle técnico de natureza administrativa e cadastral, distinto da função registral. Ao registrador de imóveis, por outro lado, aplica-se diretamente a lei, e não o decreto, pois sua atuação é regida pela Lei de Registros Públicos e supervisionada pelo Poder Judiciário, conforme o artigo 236 da Constituição.

Mesmo antes da obrigatoriedade do georreferenciamento certificado, o registrador jamais pôde admitir o ingresso de títulos referentes a imóveis imprecisos ou indeterminados. O artigo 225 da LRP e o princípio da especialidade objetiva impõem que toda matrícula reflita um imóvel física e juridicamente delimitado. Dessa forma, ainda que o Decreto nº 12.689/2025 tenha prorrogado a certificação Sigef, o georreferenciamento técnico continua sendo o meio adequado e necessário para o cumprimento da exigência de identificação legal. A interpretação de que o georreferenciamento teria sido suspenso até 2029, permitindo a prática de registros sem qualquer base geodésica, representa um grave retrocesso e uma verdadeira porta aberta para a grilagem de terras.

A ausência de identificação precisa impede a verificação da coincidência espacial entre áreas privadas e áreas públicas, fragilizando o controle do território e dificultando a detecção de sobreposições com terras devolutas, unidades de conservação ou glebas de domínio público. O próprio Provimento nº 195/2025 do Conselho Nacional de Justiça, ao disciplinar o intercâmbio de informações entre os Registros de Imóveis e os órgãos fundiários, reconheceu a centralidade do georreferenciamento como instrumento de prevenção à grilagem e de integridade territorial. O provimento impõe aos registradores deveres de interoperabilidade e de verificação espacial que só podem ser cumpridos com base em dados georreferenciados confiáveis. Cumprir o Provimento nº 195 sem o georreferenciamento é tecnicamente impossível, porque sua estrutura se funda justamente na correspondência entre o fólio real e o território físico.

O registrador de imóveis é o guardião da especialidade e da coerência territorial do fólio real. Sua atuação transcende a análise formal dos títulos: cabe-lhe assegurar que cada imóvel descrito e matriculado corresponda com precisão ao território brasileiro, preservando a integridade da base fundiária e a harmonia entre o direito e o espaço físico. Nesse contexto, o georreferenciamento não é apenas uma exigência técnica, mas expressão do poder-dever de qualificação registral e instrumento indispensável à correta individualização do imóvel, à segurança jurídica e ao ordenamento territorial. A certificação pode ser prorrogada; a segurança jurídica, jamais.

Moema Locatelli Belluzzo é registradora e tabeliã no estado do Pará, graduada em Direito pela Universidade da Amazônia, mestre em Direito, Justiça e Desenvolvimento pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e doutora em Direito – Empreendimentos Econômicos, Desenvolvimento e Mudança Social, pela Universidade de Marília (SP), especialista em Direito Notarial e Registral, Direito Civil, Processo Civil e em Direito Constitucional, presidente da Anoreg-PA, diretora executiva da Anoreg – Brasil e diretora de assuntos da Amazônia Legal do Operador Nacional do Registro Eletrônico de Imóveis (ONR).

Fonte: Conjur


•  Veja outras notícias