Juízes passam a ser obrigados a consultar central de informações sobre escrituras públicas de manifestações de vontade, inclusive sobre futura curatela; especialistas apontam redução de conflitos
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Uma alteração no Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial pode trazer um impacto importante na vida de pessoas idosas e aquelas sem aptidão plena para exercer pessoalmente os atos da vida civil. No dia 7 de outubro, a Corregedoria Nacional de Justiça (CNJ) baixou provimento para determinar que os juízes, em processos de interdição, consultem a Central Eletrônica Notarial de Serviços Compartilhados (Censec), que concentra informações sobre as escrituras públicas de manifestações de vontade, inclusive sobre futura curatela.
O texto destaca a “importância de os juízes, em processos de interdição, terem ciência acerca de eventual escritura de autocuratela como subsídio para suas decisões acerca da nomeação de curador.” A medida reduz o risco de impor ao idoso ou incapaz um curador totalmente estranho ao seu círculo pessoal ou social.
Para a professora e advogada especialista em direito de família e sucessões Amanda Helito, sócia do PHR Advogados, a regra que obriga os juízes em ações de interdição a consultar se o interditando, quando ainda capaz, deixou algum documento formalizando sua vontade quanto à escolha de um curador é revolucionária. “Ainda que o provimento mantenha a interdição como um procedimento judicial, essas novas regras dão ao juiz a possibilidade de evitar maiores litígios e dúvidas, o que economiza tempo e evita desgastes para todos, especialmente para o interditado, que depende da tutela do Estado.”
Para Caio Almeida, especialista em direito de família e sucessões do Ambiel Bonilha Advogados, o provimento representa um avanço significativo porque reforça a autonomia da vontade e dá efetividade às escolhas antecipadas feitas pela própria pessoa que, no futuro, pode vir a necessitar de curatela. “Isso amplia a segurança jurídica, reduz disputas familiares e promove um modelo de curatela mais alinhado ao Estatuto da Pessoa com Deficiência e à Convenção da ONU, privilegiando a dignidade e a autodeterminação.”
Ele entende que o processo deixa de partir de um ponto neutro e leva o juiz a analisar se existe uma manifestação prévia de vontade registrada em cartório. “O procedimento tende a se tornar mais objetivo, mais respeitoso da autonomia da pessoa e menos sujeito a conflitos, já que a vontade previamente expressa serve como parâmetro inicial da decisão.”
Ainda assim, segundo ele, o provimento não retira a discricionariedade judicial. “O juiz permanece livre para não seguir a indicação contida na escritura se houver indícios de vício de consentimento, se o ato parecer incompatível com o interesse da pessoa interditanda, ou se surgirem provas de que ela não possuía plena capacidade ao tempo da lavratura da autocuratela.”
Almeida considera que o provimento é positivo e representa um marco relevante, mas ainda há espaço para ajustes. “A padronização do conteúdo das escrituras de autocuratela poderia ser mais clara, de modo a evitar interpretações divergentes entre os cartórios e garantir maior uniformidade nacional.”
Passo a passo da curatela
É preciso ter 18 anos ou mais para procurar um cartório de notas e indicar alguém como curador. A pessoa pode nomear, antecipadamente, um ou mais curadores, em ordem de preferência, para sua representação, quando impossibilitada de manifestar sua vontade. O curador pode ser qualquer pessoa de confiança, não precisa ser parente ou cônjuge.
Na escritura, é possível indicar substitutos, caso o curador escolhido não possa ou não queira assumir. Cabe ao tabelião verificar se a pessoa está consciente e agindo por vontade própria antes de registrar a escritura. Mesmo com a escritura, haverá um processo judicial de curatela no futuro, com participação do Ministério Público e avaliação das condições da pessoa escolhida.
O documento de autocuratela tem acesso restrito: só o próprio declarante ou o juiz podem consultá-lo.
Atualmente, pelo Código Civil, há uma ordem de prioridade para definir quem é o curador de outra pessoa em caso de necessidade. É considerado pelo juiz, primeiro o cônjuge ou companheiro da pessoa, depois pai ou mãe, até chegar nos descendentes considerados mais aptos.
Esta regra não deixa de valer, mas, no caso da autocuratela, o juiz passa a observar a vontade expressada pela pessoa no cartório.
Quanto custa a autocuratela
O custo da escritura pública de autocuratela varia conforme o estado e a região onde está localizado o cartório. Em São Paulo, a escritura de “Diretivas Antecipadas de Vontade” (curatela ou testamento) pode chegar a R$ 590.
Cenário de conflitos familiares
Os conflitos decorrentes da interdição de pessoas idosas ou incapazes pelos familiares são mais comuns do que se imagina, segundo os especialistas. Foi o que aconteceu com um idoso de 85 anos, conforme conta o advogado Athur Migliari, que atuou como promotor público durante 30 anos. “Meu cliente, nascido em Portugal e com dupla nacionalidade, conseguiu um bom patrimônio em São Paulo criando uma rede de padarias. Há um ano e meio, dois de seus filhos biológicos e um adotivo decidiram interditá-lo, alegando incapacidade física e mental e a Justiça atendeu o pedido, considerando unicamente o laudo de um perito.”
Segundo ele, o homem não havia nomeado curador, até porque não se considerava inválido ou incapaz. “A única dificuldade dele é de mobilidade por um problema nas pernas, mas não o incapacita. Ele nem usa cadeira de rodas. E está com o juízo perfeito.”
Migliari diz que, imediatamente após a interdição, os filhos excluíram a única irmã, aliada do pai, e passaram a controlar toda a renda do idoso, incluindo aluguéis de imóveis e aposentadoria. “Um dos filhos chegou a passar uma padaria para seu nome, o que conseguimos reverter na Justiça. Ele acabou fugindo dos filhos para Portugal, onde obtivemos três laudos de que ele leva uma vida normal, viajando, fazendo turismo, mesmo sem ter acesso à sua renda no Brasil.”
O empresário já tinha um patrimônio no país europeu antes de migrar para o Brasil. Com isso, ele conseguiu que a Justiça em primeiro grau revisse a interdição. Os filhos recorreram ao Tribunal de Justiça de São Paulo que deu efeito suspensivo à decisão, mantendo a interdição provisória. O recurso ainda aguarda julgamento.
O advogado calcula que a interdição já consumiu R$ 2 milhões do patrimônio do idoso, incluindo o valor pago mensalmente à curadora. “Uma curadora que nunca viu o rosto do meu cliente. Não dá para entender como uma pessoa consegue ser curadora de um idoso que está a um oceano de distância e contra a vontade dele.”
Em outro caso, em Sorocaba, uma idosa de 85 anos ainda luta na Justiça contra o ato das duas filhas que a interditaram alegando incapacidade para gerir seu patrimônio. A mulher, que teve a identidade preservada, era esposa de um juiz trabalhista e, além de vários imóveis, recebe uma boa aposentadoria. O processo foi proposto no início dos anos 2000 e as filhas obtiveram uma medida de interdição provisória, enquanto a ação era protelada pelos advogados delas.
Em 2017, o laudo feito por indicação da juíza do processo concluiu que a idosa estava “capaz de morar sozinha, administrar sua residência, viajar desacompanhada, realizar atividades domésticas, dirigir e realizar cursos, mas está incapaz para administrar suas finanças, sendo caso de interdição parcial, devendo ser reavaliada no período de um ano.”
A idosa jamais aceitou o curador que lhe foi imposto. “Sempre trabalhei e ganhei o dinheiro honestamente. Houve mês que eu recebi menos de R$ 2.000,00 porque ele (curador) não aceitava pagar táxi, etc, parecia o dono do dinheiro.”
Em outro trecho, ela reclama: “O curador está me difamando e me humilhando publicamente, me acusando do que a juíza não alegou - incapaz. A prova disso está no fato de eu ter ido ao Banco do Brasil para fazer o recadastramento, a funcionária disse que não podia fazer porque na tela constava como ‘incapaz’. O curador me fez passar constrangimento por não pagar a Amatra (Associação dos Magistrados) recebi cobrança e fui excluída.”
A idosa reclama também do distanciamento das filhas que a interditaram. “Elas (as filhas), nesses 20 anos, nunca vieram perguntar se eu preciso de alguma coisa e se estou bem. Agora estou com 80 anos. O processo teve início quando estava com 60 anos. Quem irá me restituir esses anos perdidos, a preocupação e indignação com a Justiça? Não pratiquei delito algum, sempre trabalhei. Por 30 anos fui professora e diretora de escola pública, concursada. Nunca imaginei que depois de aposentada tivesse que lutar por Direitos Humanos, Justiça e Liberdade.”
Fonte: Estadão